Tenho tanta saudade de mim...

segunda-feira, novembro 06, 2006

o dia que os anjos nascem

Ele decidiu acordar mais cedo. Não que houvesse alguma obrigação a ser cumprida. Decidiu apenas ver o sol nascer e assim fez. Sempre fora assim, decidia ao acaso seus caminhos e os percorria. Não acertava algumas vezes, mas jamais negava o desejo do coração. Era supersticioso. E apesar de todos os sinais apontarem mais uma manhã trivial, sentira que aquele seria o seu dia, como se sua vida fosse todo aquele instante e todos os gestos, por mínimos que seus músculos fizessem, tomariam explosivamente a vastidão do infinito, marcando a sua existência tão fugaz e efêmera até então. Talvez pudesse sentir um quê superioridade em seu devaneio. Mas na verdade sabia que apenas amava, amava tanto que desejava seu corpo unir ao mundo, seus recônditos, sua lama e seu esplendor, sem escrúpulos, sem medo.

Era só. Fisicamente era. Nenhuma paixão carnal relevante, nenhuma semente ou herança, nada. Tristeza não combina com solidão. Não para ele. Feliz é ser livre e isto ele o era. Tão livre que era dado a risos em velórios, mas não porque era sádico, via apenas as coisas diferentes. Por ter as pupilas coloridas quiçá pudesse descrever todas as cores jamais contempladas que por certo os raios inatos do sol desenhariam no céu aquela manhã.

O breu do horizonte já se tornava tênue. Não demoraria muito o momento que tanto desejava. A aurora pouco tardava a surgir naquela cidade equatorial. Tudo era muito dinâmico por lá e se qualquer um parasse um pouco e suavizasse suas ondas elétricas mentais, até o movimento de rotação da terra seus pés poderiam sentir. Então veio a luminosidade policrômica da manhã. Chegava a ser grossa e pesada. A brisa marítima acompanhava a velocidade da intensidade do brilho do sol que crescia a medida que este invadia toda a cúpula celeste. A sacada já não era suficiente...

E quando suas retinas cegaram com a atômica expansão da luz, a brisa fez-se tufão e os braços do rapaz eram asas. Um anjo pálido, taquicárdico. Pulou do décimo quinto andar. Morreu de traumatismo craniano.

sexta-feira, setembro 08, 2006

holocausto

Eu tenho tanta pena de morrer, de deixar tanta coisa... Outro dia uma tal de espírita veio me dizer que era bobagem pensar assim, que lá do outro lado existem coisas melhores. Mas não pra comer. Eu aposto! Ninguém come lá. Onde já se viu dizer que alma come? Eu acho que é por isso que tem tanta alma penada pelo mundo afora, todas com fome, coitadas... Eu me lembro dos tempos de menina que mamãe fazia uns cozidos tão bons, papai trazia caças pra fazer paçoca e assados. Mas depois de velho ninguém mais se governa. Nem mesmo o que enfio goela abaixo eu determino. Um batalhão a me apontar um monte de armas a começar pelo meu médico da pressão. Ele não come nada insosso. E fica jogando piadinhas dizendo que eu sempre ando muito zangada. Se eu comesse, ah, até que seria mais alegre. Minha filha, a discípula do holocausto. Nunca vi tanta tortura. Todos comem diferente de mim, aliás eu sequer como, eu engulo apenas. Nada de paladar, nada de satisfação. Sexo sem prazer. Antes de minhas carnes caírem eu até teria um consolo, mas agora, velha, além de tudo viúva... Melhor nem pensar nestas coisas, é pecado. E dizem que minhas taxas aumentam, só minha paciência que não. E reclamam “faça exercícios”. Trabalhei a vida toda cuidando de menino atentado e lavando roupa de marido. Eu mereço descanso! Nem isso, nem isso... Fazer que eu caminhe feito idiota pela praça da cidade. Acho que fazem de mal, só pra eu ver o sorveteiro, o pipoqueiro e a mulher do churrasquinho... Eu já nem fico tão aborrecida, eu como escondida depois e pronto. Eles descobrem tudo, eu sei, mas aí ninguém vai me tirar a comida fora mesmo. E nem adianta ralhar, eu sou surda. Uma das vantagens da velhice: a surdez oportuna. Tratei de ficar surda logo, é bom, ajuda. Só não aceito que digam que sou broca. Sonsa, talvez. Sempre gostei da Capitu, seus olhos dissimulados. Os meus, iguais. E minhas netas nunca entenderam como ser. Por isso estão todas encalhadas. Na idade delas eu tinha até anel de compromisso e as minhas carnes eram fartas, não era mirrada. Elas não comem sarapatéu todo final de semana como eu fazia. Nenhum viço... E ainda chamam de moda. Dizem que os rapazes gostam assim. Mentira, homem não pensa além do que está entre as pernas. Até isso eu já compreendia e estas tontas ficam se matando por uma coisa vã. Vai entender essas meninas. Melhor mesmo ficar quieta com meus comprimidos. Um dia aprendo. Um dia... Espero que não demorem para o almoço...

a viagem sem frito

E lá vinha a velha com seus peitos enormes. Duas melancias. Não sei como aquela pobre criatura conseguia forças pra ainda arrastar o corpo com aquelas duas montanhas adiante. Era descomunal. Tentava de todas as formas mudar o foco de minha atenção, mas era maior que minhas possibilidades. Deus, como eram grandes...

- Bom dia cumpade.

Ela insiste em me chamar de compadre. Que mania! Os filhos dela são todos mais velhos que eu... Costume do interior. Vá entender.

- Bom dia comadre, como anda?
- To indo como Deus quer, né?

Deus não haveria de estar muito contente com ela. Afinal, que sina, que sina... Quinze filhos, três mortos, um marido alcoólatra, e ainda aqueles dois despropósitos da natureza de quase cinco quilos... Ela há de ser recompensada noutro plano.

- Passei na frente de sua casinha, a senhora tá reformando. Gostei de ver...
- É cumpade, sabe como é, eu recebi um dinheirinho da morte do meu fio... Um tal seguro. Aí comecei a casa, tem duas salas, dois quartos, uma cozinha, uma salinha pros meus santos... Mas tá faltando um bocado coisa, sabe?

É sempre assim, eu pago pela minha boca... Agora tenho certeza que ela vai pedir algo. Diaxo. Mas desta eu me livro já!

- Pois é, comadre. Mas a gente vai fazendo as coisas aos pouquinhos. Devagar que a gente consegue, com a graça de Deus.

Ufa... Com a graça do teu Deus, mulher. Valei-me de ter um Deus que permita que além de sofrer todas as atrocidades do mundo ainda ter uns peitos daquela extensão? Acho que estou ficando obcecado... E o pior! Ofereceram a ela uma cirurgia plástica, mas ela não quis. Vê se pode? Quanto mais eu penso, menos entendo a cabeça desse povo. Eu hein...

- Mas comadre, a senhora tá abatida... Os olhos assustados. E esta perna?
- Ah, cumpade Zé eu nem lhe conto...

Melhor mesmo não contar. Argh! Detesto ser chamado de Zé. Mas tudo bem, um risinho amarelo sempre disfarça. Fico até com vergonha de chamar atenção frente tamanha tanta humildade daqueles olhos. Um final de novela seria menos comovente. Está bem, está bem, pode chamar de Zé sim. Vá, continua...

- Eu furei meu pé num prego, sabe... Deu uma tal de isi... isi... isipela, né isso?
- É mesmo comadre. Mas a senhora procurou médico?
- Tomei uns bióticos. Umas piulas... Tô ficando mió. Mas eu cheguei a pensar que tava pertinho d’eu fazer a viagem sem frito...

Viagem sem o quê? Estes caboclos têm umas expressões... Deveria ter dicionário. Frito até ainda vai, eu bem sei o que é, mas viajar sem frito... Af, melhor deixar quieto.

- Ah, ta certo comadre, compreendo. Um abraço pra senhora. Já vou.
- Sim cumpade, tenho tanta vontade do sinhô me dá um foto seu. Eu rezo tanto pro sinhô merecer tudo de bom, cumpade Zé. Um foto linda. Me dá?
- Eu vou providenciar, senhora. Prometo. Até logo.
- Inté siô.

Esperei um pouco antes de seguir caminho. Fiquei olhando... E lá ia a velha, manca, redimida dos pecados que por certo eram ínfimos ante tanto sofrimento talhado em seu rosto. Nunca mais vi a comadre. Sumi. Nunca mandei retrato, nem coisa alguma. Eu que pensava que ela iria me pedir mais. Pediu tão pouco e mesmo assim eu não retribuí. Ela que merecia ser feliz...
Tempos depois, voltando de férias, disseram que ela tinha feito a viagem sem frito. Compreendi tudo então. Comprei algumas flores e fui ao seu encontro.

fim dum velho que sempre andava pela praça no fim de tarde

Ele era feio, mas não era qualquer coisa medonha que pudesse ser comparado ao esquartejamento duma vaca, era pior. Era pior. Por isso morreu... Morto ninguém mais poderia ter sua feiúra motivo de escárnio. Morto ninguém saberia, mesmo que em vida ninguém realmente soubesse dele, agora nota-lo seria no mínimo improvável. Melhor assim. Durma em paz...

domingo, junho 25, 2006

o riso e suas artimanhas

Feliz de quem me ama. Só amo um; e rio para muitos.

Meu riso é tão grande quanto o amor dos outros. Amo para sofrer, mas nunca deixo de rir. E me amam. Eu, nem sempre. Quando a tristeza do outro rasga o peito, tenho sempre o amor de um cultivado pelo meu riso. A solidão me apavora. O remédio: rir.

Deixar de amar dói. Demora. No processo sempre me perco na ilusão da volta e pronto, estou no ponto inicial. Mas quando tudo se perde na imensidão do tempo e as coisas do passado e suas repercussões já não me fazem correr para um colo estranho que me espante o ser sozinho, questiono as lágrimas que em minha face correram. E o que preenchia meu vazio de sempre de fato é bem menor que os grãos d’areia das dunas áridas da solidão.

O tempo é cruel. Traz consigo toda a força do esquecimento e a avalanche da indiferença. É insidioso. E mata. Um Davi que com pedras e dentes dilacera o corpo do gigante até o instante que não há uma gota de sangue a tingir as gengivas mortais do pequeno criminoso. E perdemos os créditos das experiências. Bobagem pensar que o erro de amar jamais é repetido. Erro sempre. Errar é tentador. Seguir adiante sem pequenos tropeços é complicado. E nesta perspectiva de erros que o passado e o tempo constroem seus castelos para os quais fugimos quando a tormenta dos dias nos faz incapazes de achar saídas. E é também neste erro que tudo de mais intenso nos invade o corpo, as entranhas e nos faz vivos.

Viver num limiar de glória e abismos é o que busco. Sempre em risco, mas assim tenho o gozo pleno das coisas, dos dias, das pessoas. Sugo a energia vital de tudo que me cerca e me faço sempre jovem, capaz de admirar o meu entorno com olhos pouco dissimulados e cheios de estranhamento. No limite de mim, do mundo. A velocidade supersônica de minhas pernas e de tudo que corre pelas minhas veias me fazem ser invisível e é certo que voar fica bem mais fácil assim. Mas no momento que o chão foge de mim levando a possibilidade dos meus amores, amputam-se meus membros e minha mente. Desacelero. Paro. Então rio. E o tempo passa.

domingo, junho 11, 2006

sobre o tempo e as pessoas

Não confundir a existência com o sonho. Tornar tudo relativo. Outra noite dessas, sentado num jardim, tinha a lua bem grande clara e o mar fazendo um barulho singelo, calmo; nem ao mesmo ventava. Uma pintura real. Não estava sozinho. As conversas pareciam nem fazer falta, realmente não faziam! Nossas presenças eram diminutas ante a grandeza da natureza. Engraçado como este fato da constatação de nossa pequenez só se dá quando crescemos, enxergamos nossas limitações e nossos obstáculos, que se tornam bem mais evidentes. Mesmo quando estamos rodeados de vida, de vida humana mesmo, estamos sós. Existência egoísta. A essência humana é egoísta. Mesmo aqueles que se propõem em gestos caridosos e desinteressados buscam uma espécie de indulto à salvação, mesmo que inconscientemente. Melhor mesmo era quando se tinha a fantasia e tudo se misturava à realidade dos dias. Não sei exatamente definir quando tudo isto se perde e passamos a ser maldosos e escrupulosos com nossos devaneios. Não sei quando nos tornamos tristes.

Então, zás, num segundo, vejo tudo tão imenso, excitante e aterrorizante com meus olhos de criança. As brincadeiras, as malcriações, as impetuosas atitudes impensadas de quem apenas sonha e vive ao mesmo tempo. Gozado como às vezes desvencilhamos o passado de nossos dias e esquecemos que ainda somos aquilo que éramos. Esquecemos que ainda podemos ter os dias coloridos e mágicos. Correr de braços abertos sem medo de olhares alheios, abraçar o amigo sem a maldade hipócrita de nossos dias, ter um amor inocente, amar de longe, andar de mãos dadas, tomar um sorvete na esquina e fazer dos gestos mais simples o verdadeiro sentido da vida. Fico triste ao ver pessoas mesquinhas que não conseguem ao menos rir de seus erros, de suas falhas. Não conseguem confiar inocentemente nem tampouco dar importância para quem está do lado. A verdade é que somos criados na perspectiva da solidão. Nunca fale com estranhos! E eles esquecem que as pessoas estranhas podem ser legais também. Chegamos no instante em que tudo é estranho e deixamos então de experimentar, de arriscar, de transpor e superar nossos limites. Daí então somos adultos. Adúlteros. Traímos nossos mais puros desejos, nossos sentimentos.

Bom mesmo era quando fechávamos os olhos bem apertados e fazíamos um pedido ao cair uma estrela do céu. Quase nunca se realizava, mas nunca perdíamos a esperança. Pedíamos sempre. E esta ausência do passado não se pode tornar relativa. Uns chamam de saudosismo, eu chamo de felicidade.

quinta-feira, junho 08, 2006

queria ser poeta...

Para quem é eterno.

Queria ser poeta. Sentir as coisas somente no papel. Fugir de minhas mãos os medos. Um canal somente. Absorveria as bondades (e as maldades) do mundo, sugando pelos meus lábios as ânsias, os desejos e, bem longe do meu coração, levaria todos os sentimentos, puros ou não, verdadeiros ou não, até correrem de meus dedos, tomarem as folhas, os olhos, as pessoas, o mundo. Queria ser passional em meus livros e apenas neles permanecer a paixão, quente, vulcânica. Assim, ao fechar a capa fria, tudo findaria. Seria sempre novo, talvez inatingível, estaria inteiro tal como nasci. Profetizar o amor e nunca de fato amar. Amar por vezes dói. Melhor evitar. Cantaria um amor bonito, simples, ou tentaria fazer do amor uma coisa simples, fato que não procede. Mas seria um papel, então pode. Não queria ser bonito nem feio, queria apenas ser um nome. Não importaria mesmo como eu de fato parecesse. Minhas letras sim, estas eu as queria alvas, claras, firmes, pulsáteis, eu inteiro, nu e puro.

Queria ser poeta. Capaz de abrir os braços, sentir o vento em meu corpo e nesta sensação descrever o paraíso. Liberdade seria pouco. Estar sempre além, acima de tudo, comendo nuvens, beijando o mar, enfrentando a grandeza da escuridão feito vaga-lume. Sensibilizar e nunca ser sensível. Um ator nada autobiográfico. Minha vida de fato não seria tão alegórica e intensa como meu verbo, nem tampouco saberia cantar a alegria com minha tristeza. Poemas, uma máscara bastante conveniente. Um esconderijo bonito. Uma fuga nobre. Seria eu.

Ser rei, construir castelos apesar de minha ruína. Saborear todos os prazeres e nunca perder o rumo, como de fato perco, como de fato perdi. E quando a dor que ora invade o meu peito tomasse vida e rompesse num grito ligeiro, um desatino tiro certeiro estraçalharia o ardor e o desejo. Com sangue afogaria meus restos inteiros. No fim de tudo, porém, quando o mal nefasto morto estivesse, meus olhos brilhariam, não com lágrimas que neste instante me acolhem no aconchego desesperado da solidão. Ao invés disto, seriam lampejos ofuscantes da retina que mira o tempo e na sua infinitude encerra meus versos em poeira que o vento leva, toma espaços, impregna a alma e deixa apenas saudade.

terça-feira, junho 06, 2006

ele, eterno

Eu guardo muita mágoa em mim, dizia. Ser triste é questão de responsabilidade. Ninguém que seja alheio ao mundo e a si próprio consegue alcançar a tristeza. No máximo, a medíocre passividade das coisas, das pessoas. 

Seus olhos traziam o peso de várias décadas de vida, mas, ao mesmo tempo, a leveza da face ainda pueril fazia dele uma esfinge. Às vezes, perdido em suas divagações, a fumaça de seu cigarro me toldava os olhos. Nada era claro. Nunca fora. Sequer para ele. As coisas não tinham sido fáceis até então. "Todo fardo é pesado e ninguém carrega mais do que pode". Puro clichê. Bordão de quem aceita submisso a vida, as atrocidades. Isso não era ele. Queria ser bem mais: mudar o mundo, quem sabe, ser um anarquista... Coisa de adolescente, de espírito desbravador, coisa de menino, da vida mesmo. Queria ser gênio e não queria conhecer a morte tão cedo (como imaginava acontecer com as mentes brilhantes). Queria ser exceção. Até ali, não sei dizer se ele queria voar ou dominar o mundo, mas decerto conhecê-lo por inteiro. Não era perfeito e nem queria ser. Pessoas devem ter defeitos, limitações, medos. O seu era ser passional. Não aceitava a ideia. Não aceita. Não quer. Paixão devora, afoga, mata. Isso não! Paixão prende e ser livre sempre foi sua sina.

Ele sequer notava, mas na verdade era cheio de paixão. Quando sonhava seu futuro e sorria a beira do mar, ele era paixão. Quando ouvia sua banda preferida e fazia amor comigo ao som da música mais bonita, ele era paixão. Quando saía pela madrugada, nas ruas desertas, sob a chuva escassa e beijava à luz do poste da pracinha, ele era pura paixão. Apenas não notara.

Mais um cigarro. A noite estava mais fria que o habitual. Ventava. Fechava os olhos e ninguém podia lhe tirar o prazer de sentir a brisa nos cabelos. Gostava deles compridos. Aliás, tudo que lhe tolhesse a possibilidade de fuga era tortura, até mesmo a cadeira dum salão de beleza. Melhor mantê-los compridos mesmo, argumentava. A calvície ao menos estaria distante. Não que fosse vaidoso, gostava apenas de como estava e de como era. Num instante, envelhecer lhe parecia apavorador: em sua mente, duas décadas passariam na velocidade de dois meses. Noutro, contrapunha tudo isto. Mais velho, poderia morar à beira do mar e certamente já saberia surfar, pensava. Ah, o mar, queria dormir e acordar com ele, namorar as ondas... Ficava excitado só de pensar. Seu rosto mudava. Aquilo enchia de felicidade qualquer um que estivesse perto. Era puro. Apesar das marcas do mundo, conseguia ter mente leve, ingênua. Crianças são assim. Elas vivem intensamente, são destemidas. Era igual. A diferença era a barba, a voz rouca, as mágoas. Mas nada era maior que o desejo de ser sempre intenso. Era fogo. Queria arder sempre. O resto que fosse fugaz. Ele, eterno.

sexta-feira, maio 26, 2006

anne

Detesto o povo desta cidade. Além de tudo, mentirosos. Vocês nem sabem, outro dia meu pai veio dizendo que lhe haviam falado que ando fumando. Fiquei atônita. Não acreditei. Nunca fumo. Nunca. Indignada, deu um último trago do seu cigarro e o lançou bem longe, impiedosamente, descontando toda a sua raiva. Soltava aos poucos pelas narinas a fumaça de suas impurezas mais profundas e as misturava à atmosfera densa daquela manhã de domingo.

Seus pés delicados, nus, massageados pela areia quente da praia e a brisa morna do oceano eram um convite ao delírio. Momento de exaltação. Superior. Traz mais uma bem gelada, seu garçom. Nada de pensamentos poéticos agora, interrompeu. Gostava mesmo era de ser mundana, sem suavidades de pensamentos, tudo deveria ser prático, bem mais fácil assim de administrar. E aí, vocês vão ao show? Continuava a conversa distraída com a prima e os amigos que há pouco haviam chegado. Um que sequer conhecia, mas que se já dividia a mesma cerveja, então já era amigo. Amigo é matéria de afinidade. Olhou, gostou, pronto, já é amigo. Muito simples. Nada melhor que um bar para fazer amigos, alegre ou triste sempre você encontra um por lá para dividir uma bebida e uma vida inteira.

O dia invadia a tarde, sol quase crepuscular, meio laranja e vermelho maculando o horizonte da baía. Nenhuma conversa fazia mais sentido. Apenas palavras soltas levadas pelo vento e perdida nos ouvidos. Se houvesse alguém que por acaso declamasse um Fernando Pessoa ou discorresse sobre uma receita de bolo, nada faria diferença. Nada realmente faz diferença quando apenas se deve estar. Estavam ali e pronto, é certo que um tanto invisíveis uns ao outros, mas a presença fixa dos olhares cruzados na mesa já cheia de garrafas e dos cacos de cada um era a certeza que eles permaneciam.

Os olhos minguavam qual a luminosidade do dia. Os dela mais que os de todos, devia ser sono, ou quem sabe a morte, ou talvez vontade de sumir. Sentia por vezes estes desejos. Conseguia em alguns momentos, muito raro porém. O fato é que já era hora de sair dali, mas como geralmente não consegue se desvencilhar das coisas tampouco de pessoas, levou tudo para sua casa, exceto os cacos, estes bastavam para um fim de domingo.

Sua casa, mais conversas, nada sem intenção, apenas faladas. Os corpos caem logo pelo chão da sala. Dormem. E se vê só. Maria! Não acredito que Maria já tenha saído... Andou pela casa procurando nada, pisava o chão somente com a vontade de ter o frio da superfície lisa sob seus pés. Ela de fato era sozinha. Mesmo com todos ali entorpecidos com o seu feitiço sonífero, continuava só e sabia disso. Melhor fugir. Parou de andar, voou ainda um pouco e desapareceu.

domingo, abril 30, 2006

sonhos... uma proletária

Todos os dias seguia o mesmo ritual. Acordava com humor trágico e o corpo quente com aquele cheiro bem peculiar de quem havia dormido por um bom tempo. Ainda permanecia ali com os olhos meio abertos, meio fechados, tomando fôlego para voltar novamente à vida. Sempre cochilava mais que podia, mas se não fizesse aquilo, parecia que não dormira a noite inteira. Mesmo com o andar das horas, nunca punha a pressa adiante de seus passos e tão logo se entregava ao seu diário processo de transfiguração. A água escorria-lhe as coxas correndo um rio pelas pernas e carreando todas as impurezas de sonhos maus que por certo haveria de ter tido. Sempre sonhava coisas ruins. Dizem que os sonhos são necessidades mal expressadas. Devia ser uma pessoa recalcada ou no mínimo tola. Sentava-se a frente de sua penteadeira e com cuidado arrumava as madeixas numa composição ortodoxa, comportada. Logo o pó viria cobrir seu rosto, moldando a máscara que diariamente compunha o semblante estático. O vermelho do seu batom era sangue puro. Matava os seus amores todos os dias, retirava-lhes o sangue e o guardava. Suas pernas delicadamente acariciadas por meias finas de seda logo ficavam tesas quando os pés se acomodavam no scarpin de salto bem longo e fino, sua arma predileta. Adorava matar e pisar suas vítimas com o salto agulha, cravejando sua ira na carne morta, espasmódica, de seus defuntos. Mas ela era recalcada. Então apenas sonhava.

Na doçura de seus gestos e na mansidão de seu olhar, trazia a ira de toda uma existência. Sua boca sedenta de almas exalava o perfume lúgubre das flores dos cemitérios. Seu corpo jazia a perdição. Apenas sonhava. Toda vestida de dama em seu tailler, saía de seus aposentos toda majestade. Descia as escadas da pensão, seu palácio, e logo a porta se abria para então a rua lhe absorver. Sumia.

Os fins de tarde daquela ilha eram extraordinariamente policromáticos. Nuanças de vermelho e azul fundiam no horizonte e cortavam a paisagem numa pintura fouvista. Logo ressurgia. O ranger da escadaria anunciava o seu regresso. Intacta. Nem parecia que um dia inteiro havia passado. Permanecia a mesma. Então retirava toda a sua fantasia, sua máscara e suas armas. Vomitava as vísceras de suas vítimas que nunca morriam. O corpo voltava a ser velho e cansado. E se entregava aos sonhos reais de morte que lhe traziam vida toda manhã.

sexta-feira, abril 14, 2006

ainda

De repente escuridão... Havia alguns dias que não andava lá bem dos humores, meio inapetente, apático e com uma preguiça maior que o normal. Por vezes no fim da tarde meu corpo ficava quente, mas logo a cama me envolvia num abraço e cedo esquecia das febres. Aliás, adoecimento é matéria de esquecimento, de pura negligência. Quem bem se lembra do corpo, da alma pouco sucumbe. Isto é tão verdade que, de todos os velhos que conheço, aqueles mais lúcidos foram os que morreram mais tardiamente, mas sempre morreram, ainda não vi um permanecer, ficar ali, mesmo latente, quieto, esperando a passagem dos tempos, sendo referência do passado das coisas e testemunha das grandiosidades d’agora. Por isso sou negligente mesmo. Pouco importa se meu fim é cedo ou tarde, agora ou se foi anteontem. Tudo tem fim. E no fim do dia seguinte a ira colérica tomou toda a extensão de minha pele, fê-la em brasa, olhos em tocha, boca em chamas. O homem negro de olhos negros e capa negra fechou então minhas pálpebras e me levou consigo. Fui.

Alguns dias depois, ou seria meses, não sei ao certo. O fato é que não estava ali há pouco tempo. Sentia apenas que voava. Olhares ao meu redor, muitos, nunca vi tantos, e se forem de anjos, todos mentem de suas belezas. Lá encima, bem acima deles, uma claridade exageradamente ofuscante indicava o caminho pelo qual estava sendo levado. Se morrer é ter que cegar a retina com aquela luz, prefiro então a penumbra de meus mortais dias, ou então a morte de lugar algum, aquela de apenas me desfazer e me espalhar pelo mundo e não ter memória, nem perspectivas de continuidade. Apenas a de estar nos lugares, como o pó que sempre permanece mesmo depois que tudo é limpo e que ninguém vê a primeira vista, mas está ali.

Quando a dor fez parte dos segundos que lentamente passavam, descobri que não morrera. Vi meu corpo cheio de pequenos tubos que invadiam minhas veias pelos quais soluções tatuavam na minha pele o caminho de meus vasos, trazendo a agonia, o sofrimento. Descobri que existe mesmo inferno, ainda que dantes nunca quisera acreditar. E ele fica aqui! Seria castigo de meu esquecimento? Seria então uma opção estar ali? Um grito rompeu o silêncio que violentava meus ouvidos, o rosto em lágrimas, sozinho. Dói ser só. Nem sequer poderia sair correndo com minhas mãos presas à cama, meus braços já cheios de hematomas, sinais da rebeldia inconsciente das convulsões. Não sou muito de me entregar. Não havia outro caminho. Calei meus pensamentos, meus impulsos e por fim minha boca.

Alguns anos depois descobri que pessoas também viviam ali, não presas como eu. Já devia ter desconfiado mesmo, afinal aqueles tubos nunca esvaziavam. Alguém sorrateiramente violava o santuário de meu sono e os trocava. E nunca dormira como ali, acho que era uma espécie de magia, de encantamento que havia naquela cama, nas paredes brancas sem cantos e na janela que não ia a lugar algum. Certo dia cheguei a olhar uma dessas pessoas. Era noite ou dia, não sei, afinal nada mudava, tudo era igual o tempo todo. Então não deixei a magia me envolver, fechei os olhos e fingi dormir, mas estava bem vivo, a espreita, como um leopardo ágil. Quando ouvi o giro da maçaneta, abri uma fresta entre as pálpebras e vi. Não eram humanos! Por isso nunca tinha ouvido sons de passos, afinal voando ninguém ouve o atrito do chão contra os pés. Desde então resolvi não querer entender mais nada, nem mesmo o porque das paredes sem cantos.

E eu aqui fui ficando só para poder ver a verdade das coisas. E fui envelhecendo sem nunca eu perceber. Nem dei conta que já havia feito a minha escolha de apenas ser o pó que permanece. Descubro-me um mar que rebenta tanto para nada e a memória é a única testemunha que prende por um fio o que ainda sei dizer. Ainda...

domingo, abril 09, 2006

um velho, uma bengala

Ele foi indo rua abaixo com sua bengala do lado e passo ébrico. Todos os dias o velho fazia o mesmo caminho e os mesmos olhares que o acompanhavam diziam “agora ele cai”. Para infelicidade de todos, nunca aconteceu. Na sua limitação, ele continuava, como quem se caminha sem destino e sem pressa de chegar a lugar qualquer, andava pela necessidade de se sentir vivo, mesmo que todo o peso do tempo o transfigurava num moribundo. E nesta luta constante contra as adversidades que eram pautados os dias daquele senhor de olhar manso, expressivo e de cabelo de algodão cru.

Não sei bem porque aquela figura me trazia tanta impaciência. A calmaria de seus gestos trazia a agonia ao peito. Queria trocar algumas palavras com ele, quem sabe um “oi, como vai”, mas será que isto se pergunta pra quem não sabe nem o que lhe espera ao dobrar a esquina? Sim, porque naquele avançar da idade, nada me espantaria se me dissessem que o velho da bengala tinha dobrado a esquina, tropeçado numa pedra e morrido de traumatismo craniano. Não sabia realmente o que dizer a ele, nem o que perguntar. O silencio que geralmente ajudava a aliviar as tensões da mente não funcionava com aquele velho. Acho que nem mesmo o pobre coitado sabia o mal que me fazia. Devia era morrer logo d’uma vez e me deixar quieto! Não queria mais ser obrigado a olhar o velho a passar pelas coisas e as coisas a passarem pelo velho, numa passividade recíproca e cansada.

Logo chegou o tempo de partir de minha cidade e buscar a vida noutras paragens. O dinamismo da capital me fez esquecer o velho e às vezes até de mim mesmo. O ritmo taquicárdico da rotina metropolitana era bem eu. Gostava daquilo, do desconhecido, uma sensação bem maluca de ser só no meio de milhares de pessoas juntas. Mas como tudo acontece comigo, isto cansava por vezes e lá eu voltava à cidadela calma e pacata que me gerou. Numa dessas visitas lembrei o velho e percebi que ele não descia mais aquela rua no fim de tarde como dantes. Senti um vazio, talvez saudades daqueles passos calejados e daquele olhar manso. Ninguém soube me dizer o que havia acontecido com ele, nem mesmo o seu nome sabiam para que eu pudesse talvez encontrar alguma lápide no cemitério e quem sabe acender uma vela. Nem mesmo se sabia se ele havia mesmo morrido. Ele simplesmente sumiu, tornou-se invisível, desintegrou-se no espaço.

Procurei saber onde ele morava. Não foi muito difícil. Uma velha casa perto do rio cercada de ripas aparadas com uma cancela de madeira na frente que abria o caminho por um jardim de hortências, rosas e cravos entremeados por capim e ervas daninhas. O som do rio batendo nas pedras se unia aos dos xexéus que faziam seus ninhos numa gameleira bem perto dali e embalavam a melodia daquele cenário melancólico. Segui um pouco mais e estava em frente da porta de madeira débil que pouca resistência fez quando forcei minha entrada. Os raios de sol atravessavam algumas telhas quebradas no teto e a penumbra envolvia a atmosfera da sala. No canto, uma cadeira preguiçosa e no mocho que estava adiante, um jornal de três anos atrás. O velho lia. Uma sensação de medo e calma juntos ao mesmo tempo me invadiu, mas fui além. Devagar, entrei por um pequeno corredor que ao fim levava a um pequeno quarto. Uma cortina de xita rasgada isolava aquele compartimento do resto da tapera e o deixava mais escuro que o restante dos cômodos. Os raios de sol que insistiam em iluminar o ambiente pelas frestas duma janela que ficava na parede do fundo daquele quadrado me convidavam para que eu os ajudassem a transpassar aquela barreira, então eu a abri.

Meus olhos contemplaram uma simplicidade tão ímpar. Fiquei parado um certo tempo até entender tudo aquilo. Na cama de palha coberta por um lençol que antes deveria ter sido branco, adormecia a velha bengala e na cômoda ao lado, uma lamparina velava papéis dispersos dispostos embaixo de uma caneta de tinta já seca. Peguei todos eles e os trouxe comigo. Saí do quarto e me achei na cozinha com um fogão de lenha com algumas cinzas que ainda descansavam no seu interior. A portinha dos fundos rangia com o vento que a insultava, passei por ela, saí e busquei o quintal. Dei algumas voltas, comi algumas cajás que haviam caído há pouco. E lá no fundo, debaixo duma laranjeira de sombra singela descansava uma cruz fincada no chão. Ele dormia ali. Na paz e na serenidade de seus dias quando em vida. Nem fiquei triste nem nada. A tranqüilidade de sua morte trouxe a paz à minha vida.

Em passos curtos e calmos agora eu subia a rua. Busquei minha casa, meu quarto e dormi. Fiquei em silencio por alguns dias, falava somente o necessário, não desperdiçava minhas forças com o supérfluo. Lembrei então os papéis que havia roubado do velhinho e lendo aquelas letras tremidas e incoordenadas vivi um século inteiro em poucos minutos. No fim de seus versos ele dizia bem assim “e fui feliz...”. Fechei os olhos e chorei.

segunda-feira, março 13, 2006

cantus a obitus

A música tocava uma tristeza tão grande e tão minha. Era noite e as luzes da cidade ofuscavam o brilho da lua tão lua naquela brisa fria e calma; e meus olhos a repousar sobre aquela paisagem da janela de meu imenso quarto, grande como o que se sente e não se sabe explicar, grande como toda uma existência que, ao fim, tampouco sabe de tudo que passou, grande como a extensão de meus pensamentos tão altos como aquela lua. Ah, que bela, mais bela que sempre, mais perto que nunca, mais quente e mais prata e mais lua.

Pensei numa cena que combinasse com todo o cenário místico e sombrio, então o peito encheu do ar, pulei da janela, voei, morri.

Muito simples, sublime, e não quero ser leve ou macio. Preciso ser fatal e cruel, agressivo e malfeito, unha encravando carne, dente lacerando pele, olhos vermelhos em ira! Quero meus pulsos jorrando sangue vermelho, rútilo, vivo, eu puro... o punhal ao lado. Pronto, tudo estaria acabado, meu fim tão intenso como sempre fui, meu momento e só meu, minha morte, tão morte de mim, tão feroz e sofrida, sofrimento doído tal fome que engole famintos, desespero que afoga aflitos. É a foice e o cutelo, meu pescoço seria norte e meu corpo perdendo-se no espaço, em pedaços inteiros tudo em mim se desmontaria, meticulosamente, cirurgicamente, tudo muito bem pensado. Meu coração, e chegaria sua vez, devorado pelos meus algozes, pela minha existência algoz e nada me restaria senão a memória dum passado e o infinito que agora seria. Não me caberia mais sangue ou carne, nem dor ou sofrimento, deixo de herança aos que ficam e que por certo haveriam de zelar meus resquícios e meus olhos cinza.

Covardia morrer assim, deixar tudo de mim, fugir enfim.

Mas a lua... a música... a brisa... o gozo... o delírio... Ah, bom mesmo morrer todo dia e todo dia...

sábado, fevereiro 11, 2006

prazer

Era uma noite para se amar. Havíamos chegado tarde aquele domingo, o trânsito estava complicado, estranhíssimo para a ocasião. No carro, mal contínhamos os impulsos, nossas mãos atrevidas invadindo as roupas, nossos olhares safados, nossas línguas molhavam os lábios e provocavam ainda mais nossos desejos. Quase subi no canteiro central da avenida depois que sua mão desceu para o meio das minhas pernas e a ponta de sua língua tocou minha orelha. Demos então uma certa trégua à nossa excitação até chegarmos em nossa casa.
No quarto, a penumbra acariciava nossos corpos já nus e a música que embalava o momento ditava o ritmo de nosso beijo, tão quente, tão ardente. Sua língua deslizava toda extensão da minha boca, percorria meu pescoço, minha nuca, e o corpo estremecia. Ficamos ali, em pé, nus, excitados por um bom tempo, provando cada pedaço de nossos corpos. Logo estávamos na cama, as mãos unidas, os corpos roçando, puro prazer. Minha boca em seus mamilos, viajando naquela geografia lisa e quente, passando por sua barriga, suas pernas e coxas, sua virilha para então morrer em seu sexo com minha língua morna, úmida e nervosa a lhe tirar os gemidos e a razão. Tão logo sinto sua boca igualmente tocar minha pele e sua língua ágil, que agora molhava também meu sexo, movia na mesma intensidade que eu provava seu sabor. Quanto tesão... nosso sexo vulgar, promíscuo, carnal... éramos nada mais que dois lascivos amantes, irracionais, sem consciência de passado, futuro ou de qualquer tempo, éramos gozo e apenas isso.
E depois de saciados, plenos, extasiados, nossos lábios mais uma vez se encontraram, agora ternos, agradecidos, nossos corpos suados se uniram num abraço, nossas pernas se entrelaçaram, éramos um, a paz nos invadiu e então adormecemos.

sábado, fevereiro 04, 2006

desnudo

Era tarde ainda cedo e o vento que estremecia as vidraças das janelas entreabertas abrandava o calor que fazia no apartamento. Da sacada, de cabeça baixa olhando uma plantinha no jardim do condomínio ouço o telefone e nem precisava pegar o aparelho pra saber quem me ligava. Taquicardia. Ouço sua voz, triste. Não poderíamos nos ver no fim da tarde... Sempre fui muito dramático e intenso em minhas palavras, talvez porque eu seja realmente assim já que depois daquele telefonema de pouco mais de meio minuto um buraco me sugou do chão, meus ossos estremeceram, meus ouvidos morreram, os olhos ficaram úmidos e então chorei.

Nem mesmo consegui entender tudo aquilo, afinal nos conhecíamos há menos de uma semana e parecia que tudo era tão forte como uma rocha, como uma vida inteira. Aliviei meus pensamentos ruins, acalmei a angústia do instante. Liguei o som. Aquela música me fazia lembrar de cada pedaço de sua boca, cada centímetro de seu corpo, cada suspiro e então viajei naquele devaneio. Num infinito, busquei o gozo deste momento e percebi que a simples certeza de sua existência era suficiente para o meu amor. Nunca imaginei que pudesse um dia voltar a ser pura sensibilidade assim. Perdi minha pele e estava novamente em carne viva e em sangue. Dói estar assim, admito, mas nada se compara ao prazer de poder sentir tudo com tamanha intensidade, até mesmo o pouso duma mosca em minha superfície cálida.

Agora, desnudo e sem pele, nada pode cobrir meu corpo, nenhuma máscara, nenhuma capa. Completamente desprotegido, indefeso e sem armas estou. Não há segredos e mesmo assim nada temo. Nada me toma de incerto. Sou como se quer. Amo apenas.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

fechar os olhos

Fechar os olhos. Um jardim cinzento de inverno, calmo, e um pássaro sozinho, quieto, manso que aos poucos morre calado como que saboreando cada segundo de seu morrer. Queria bem assim um dia partir, sereno, lúcido e consciente de meu fim para então meu corpo se misturar à terra, num encontro único em que tudo invade e ao mesmo tempo se evade de minha extensão. Penso que depois, enfim, não teria mais começo nem fim, seria toda a terra, todas as plantas, todos os alimentos e todas as pessoas, parte integrante da matéria, milhões de átomos, energia pura. Ah, o que é isso que me toma e me faz sentir elevado? Tão alto, tão além, tão acima do além? A perspectiva de ser o tudo no final me traz gozo como a sensação de abrir os braços e deixar os dedos lá, bem longe, bem esticados, tesos, e o vento a correr entre mim, por mim e em mim.

Fechar os olhos. Um vôo alto e os braços em pena. Ser pássaro. E a liberdade que nunca dantes tivera enche minhas papilas dum sabor de céu. E lá fora, bem acima de meus horizontes, o silêncio explode no peito e cresce dentro, profundo e infinito, afoga e abate, corta-me as asas e mais uma vez, desesperado agora, morro, a cabeça em direção ao chão, o bico apontando o meu fim.

Fechar os olhos. Não quero ser pássaro nem jardim, nem ser livre ou alto. Fechar os olhos apenas e nada pensar. Pensar cansa. Apenas fechar, ficar ali, quieto e no fim adormecer.

terça-feira, janeiro 24, 2006

guerra de mim

hoje descobri que sou mau. É inevitável deixar de admitir que mesmo por trás de atitudes desinteressadas de benevolência, a crueldade, ainda que latente, contida e controlada permanece ali, quieta, como que instigando e questionando a sinceridade de meus atos, a pureza de minhas palavras. Não chego ao ponto extremo de afirmar que seja hipocrisia. Não. Isto seria muito superficial e atentei ao fato que não posso ser superficial. A visão de mundo a qual fui obrigado enxergar com minha formação acadêmica cujos conhecimentos teóricos aliados a vivência prática não permite que eu limite meus conceitos sobre as pessoas simplesmente pelas suas patologias físicas, emocionais ou sociais. Tenho que ir além. Apesar de a tendência seja sempre a de despersonificar o outro, pô-lo num grupo, como numa metodologia científica positivista arcaica, em que o diferencial da possibilidade de atitudes próprias perde seu crédito, não devo ser igual. Tenho que estar além. A vontade nazista que se tem da construção de uma sociedade menos caótica, eliminando aqueles que permanecem no caos, que trazem o caos ou que são o próprio caos nada mais é que o avivamento da vaidade egoísta ariana e demagoga, razão basal de todas as guerras que o mundo já sentiu. E que agora desperta o campo de batalha dentro de mim. Estou no meio da trincheira em que dois de mim lutam. Terei que morrer. Talvez morto eu seja mais coerente. E eu que ainda pensava que um dia poderia ser feliz...

segunda-feira, janeiro 23, 2006

sozinho

<><><><><> o sol invadia mal educado a vidraça de meu quarto e esquentava as colchas da cama que cobriam meu corpo ainda quieto da longa noite de sono. Acho que tenho ficado criança estes últimos tempos, afinal dormir tão cedo num final de semana seria nada mais comum às puerilidades dos idos tempos. Devagar e nobre abri as pálpebras e os ponteiros do relógio me traziam uma grande felicidade. Era sete da matina. Tinha certeza que uma hora dessas ninguém que conhecia deveria estar acordado, nem tampouco minha avó que sempre dormia um pouquinho a mais nas manhãs de domingo. Talvez esta sensação de ser só no mundo, naquele instante, trazia um sentimento superior e logo meu corpo se pôs ofendido.

<><><><> a caminhada nada freqüente em meus dias seria algo interessante naquela hora. Pus dois currulepos* nos pés, uma bermuda jeans e camiseta cinza claro como o horizonte. Mais tarde choveria. Decido então dar sentido àquela manhã e logo inventei que deveria tirar dinheiro para o almoço no caixa eletrônico que ficava perto de um posto de gasolina próximo a meu prédio. E fui. Surpreendo ao ver já duas pessoas numa pequena fila do caixa e algumas outras sentadas em bancos fixados ali perto. Frustração. Não era mais só...

<><><> inadvertidamente ouço pedaços de conversas de comadres. Uma dizia a outra que tinha um primo cuja alcunha era “Careca”. Careca era um sujeito muito responsável e havia sido assaltado. Ri comigo. Ora veja, a pobre vítima mais parecia ter nome de ladrão. Preconceito. Engraçado como detalhes nos fazem criar perspectivas sobre as pessoas sem ao menos conhecê-las. Talvez tenha julgado mais que deveria ao longo de meus trinta e cinco séculos de vida. Deveria ter olhado mais pra mim. Deveria ter sido verdadeiramente só.
..............................
<><> *currulepo = tipo de calçado estilo sandália típico do nordeste feito de borracha de pneumáticos

domingo, janeiro 08, 2006

rave

-------e o som frenético, hipertenso, taquicárdico
-----e a luz agitada, incoerente, paroxística
---e o corpo, máquina, máquina-corpo, robô

---sem ordem, sem roteiro, sem retalho, sem retrato
--------sem verso, sem fonte, sem rumo nem fim

---tunzt tunzt tunzt tunzt tunzt
-----------tá tá tá tá... tá tá tá...

---torpor...
----e é dia!