Tenho tanta saudade de mim...

terça-feira, dezembro 27, 2011

Carlos e Juliana


“Eu queria ter te conhecido de outro jeito. Queria que tudo tivesse sido diferente. Sempre idealizei meus amores e o mais perfeito de todos nunca imaginei assim. O mais perfeito de todos não teria como cenário nossas brigas e lágrimas. Perdi a paz, perdemos a paz, meu amor. Não vejo mais sentido para que nossas vidas sigam neste paralelo de desejos que jamais se cruzarão, sequer no infinito. Não quero mais isso. Não quero nós. Não quero eu.”

Juliana lia trêmula as palavras marcadas fortemente no papel amarrotado deixado num canto do quarto enquanto ainda podia ouvir o grito de Carlos ao se atirar do décimo segundo andar daquele prédio que havia se tornado nos últimos meses a sede de infernos e abismos para os dois.

Não morreu por amor. Morreu pela frustração de não o ter, pelo desencanto, pelo desassossego. Morreu jovem ao menos. Não experimentou a triste constatação de que todo este fogo (que nasce da juventude), fogo de amor sincero que arde enquanto dura e dura o infinito dum beijo ou da transa boa, não passa de percepções erradas, inocentes e precoces da realidade dos fatos. O tempo é implacável. Nada suporta seu peso sequer os amores eternos. Viram sei lá o que, uma coisa acomodada que se leva com a barriga atribuindo a eles um eufemismo singelo da frigidez e rigidez articular matinal: amizade. Ficam-se velhos, mas amigos, ok? Pior mesmo é quando se ouvem absurdos sobre relações incestuosas dos velhinhos: agora são como dois irmãos! Valei-nos, Pai. A impotência não é a castração da hombridade, da virilidade, mesmo que senil. Afinal, há músculos diversos que podem exercer funções mil, proporcionando os mesmo prazeres do membro rijo, senão mais. Duvidam? Mirem no espelho e abram a boca: ei-la!

Sorte mesmo a de Carlos.

Veio o rabecão do IML e levou as sobras do rapaz suicida. Juliana enxugou as lágrimas (as últimas), trocou a roupa, tomou seu comprimido e dormiu, agora com mais espaço na cama.

sexta-feira, dezembro 02, 2011

meus oito anos

A tarde quente
do verão equatorial,
com os sons dos carros,
em uníssono caos,
invadiam a janela, brutal,
ferviam meu corpo nu
coberto de suor, de sal
correndo ligeiro entr'os pelos,
nas curvas, até a virilha e o pau.

São estes os vilões: os dedos!
dantes débeis e ingênuos,
das carícias de pequeno
(desde os oitos anos exatos)
no sexo frágil - púbere falo,
levando as pernas em riste
neste rítmico embalo
do desatar frenético de fivelas
trazendo o gozo em jato.

São eles os culpados,
Seus discípulos do Diabo!
Que mesmo das regras, dos ditados:
que em mãos enfadonhas
crescem pelos, verrugas e cravos!
Transgrediam adictos,
rompendo sermões nefastos
dos padres em missas de domingo
que a mim dirigiam o veredito:
É coisa do demônio, filho!
É o mais puro pecado!

terça-feira, setembro 27, 2011

io non fumo

Novos ares são fontes constantes de estranhamento. Eu, ser viajante perdido pelo mundo, sozinho com minhas inquietações, parado em frente à uma banca de revista, percebi o andar manco, anêmico e desorientado duma velha. Era cinco horas da tarde, sol ainda a pino por aqui. Um domingo, sinos tocando: ela vai à missa!

Deixei a velha em paz e voltei a perceber o meu entorno. Fazia calor e as pessoas daqui fedem mais do que o habitual neste período do ano. Fedem mesmo. Exalam uma podridão tal que em certo momento percebe-se uma nuvem cinza que lhes encobre como fumaça de cigarro. E talvez até seja mesmo. Campanhas antifumo não funcionam nestas bandas de cá. Outro dia vi um cartaz: Eu não fumo! Do lado, um lixeiro com pelo menos quarenta e duas bitucas de cigarro. Tive a pachorra de contar. Até ri. Pior: na frente de um hospital. De câncer! É que fumam desde a escola... Meu Deus! Se na minha escola tivesse um guri com um cigarro na boca: Bomba! Bomba! Corram, chamem os pais! Conselho de classe! (Será que ainda existe isso? Conselho de classe?). Aqui não, aqui é moderno, faz parte da revolução da independência-sexual-social-juvenil. Se é que esta também existiu. Bebe-se, fuma-se, transgrede-se, fura-se fila, nega-se assento aos velhos nos ônibus, ok! É a era vinte e um. Geração xis, ípsilon, zê! E eu que nos meus parcos conhecimentos imaginava que a sociedade se segregava entre os xis-xis e xis-ípsilon, salvo algumas aberrações genéticas, é claro.

Esperei o sinal abrir e atravessei a rua. Logo na esquina, um bar: desce aí uma gelada! Com um calor infernal daqueles, desceu mesmo, do jeito que estava, se gelada ou meia boca, foi. Era, segundo informação precisa do copo, zero vírgula quarenta e cinco mililitros. Uma boa quantidade a ser apreciada num fim de tarde. Melhor seria se fosse à beira do mar e com pessoas falando em português, mas nem tudo pode ser perfeito. Os sinos deram uma segunda chamada. Aqui eles chamam três vezes: 1- olha, vai começar; 2- ok, galera, venham logo, é sério; 3- se não chegarem o padre vai excomungar todos vocês, viu! Semana passada fui a uma missa, afinal terra do Papa, né. Mas como o Papa aqui não é lá tão pop assim, representei 10% da plateia, não que eu seja gordo, não estou contando em área corporal, oras, é em números mesmo. Uma frustração: sequer sair à francesa pude. Garçom, manda mais meio litro! Enche um pouquinho mais esse copo aí que dá!

Num intervalo de aproximadamente meia hora, a velha manca e meio estrábica (que só agora deu pra perceber) percorreu uma distância de aproximadamente duzentos metros. Lógico, ajudada pelas muletas. Que missa, o quê! Ela entrou foi no bar, no meu bar! Gritou uma coisa qualquer lá dentro e na mesma hora lhe trouxeram um copázio de cerveja bem maior que o meu. A velha virou este copo numa velocidade tal que até hoje vi poucos fazerem. Soltou um Arhhhh! tão aliviado que parecia o néctar dos deuses. No fim, bateu brutamente o copo na mesa, olhou desconfiada para cada lado e saiu fazendo o igual caminho inverso.

Fiquei atônito! Olha, quase que aplaudia! No meio daquele entusiasmo, dum êxtase quase orgásmico de congraçamento de Deus com os homens, vem e me bate o ombro alguém que me pede um isqueiro. Uma broxada infeliz! Filho-duma-qualquer! Bem devagar viro. Fito um indivíduo de um metro e setenta e pouco de altura com um malboro grudado na boca – nem tirou pra falar: se tinha quinze anos era muito. Pê da vida pelo com meu coito interrompido, respondo: io non fumo!

sexta-feira, setembro 02, 2011

quase morto

                             Hoje escrevi um verso torto:
                             não é redondo, nem curvo, nem roto
            não tem inicio, só meio - meio torto
            como um velho que caminha manco, sozinho, absorto,
                               num semblante pálido, sem graça, quase insosso
                              da velhice flácida, passada, esquecida - um quase morto.



quinta-feira, abril 28, 2011

a infância do meu pai

Ao meu amado pai que outro dia, visitando a casa de seu padrinho, disse-me que procurava sua tia e sua infância por detrás daquelas portas antigas.


Atrás daquela porta velha sem trinco
jazia a infância do meu pai.
Esquecida estava nas suas memórias de menino
sua vó Amélia ali, sentada, quieta, sorrindo.
Estava também o seu pião de madeira,
talhado a mão pelo Zeca Texeira,
e no mesmo canto da mente,
numa caixa bem juntinhos,
dormiam uma pipa, um balanço
e, feito de lata de óleo de cozinha
com rodas de chinela havaiana
puxado por um cordel, o seu carrinho.

E só agora naquele vão sujo com poeira
da porta velha sem trinco
carcomida nas beiras
que levava a um quarto
cuja luz se acanha
da casa de portão largo
quase de esquina
com a rua que o nome esqueço
e outra, a Zoé Cerveira,
no bairro decadente da Alemanha
meu pai se achou de novo criança.

Aquela porta era suja mesmo de tempo:
escondia não somente o pó e coisas velhas
dos tempos de sua vó,
mas das disputas de peteca, de bola e outras parelhas
que fizeram brotar naquela tarde a meninice largada no esquecimento;
e que agora adulto, vago e sozinho
caminhando entre paredes e assombros que desde pequeno
guardando no peito seco e mofino
o que de idos tempos persiste voraz, canino,
que é o medo de perder a voz, o raciocínio
ou de ti, passado, seu encantamento.

sexta-feira, abril 15, 2011

poesia imunda

            A velha não cabia num poema.
            Tão suja, cheia de mazela,
com seus resmungos, gritos de dor
                                          e mais velha.
Sua mama em carne viva, ulcerada
                                          e amarela
consumida pelo tumor - doença imunda
                                          e que nem sabe ela
deixou aquilo crescer em seu corpo como bicho,
                                          sem noção,
                                          quase cadela
explodindo em podridão,asco, horror
                                          necrose fétida;
que perturba minha paciência, meu sono,
                                        sua néscia!

         Agora, sem paz
         escrevo rude, depressa
         e perplexo questiono:
         se o poema que componho
        cabe tamanho assombro
        desta tua doença maléfica?

Ora pois, se é fato e verdade
que a poesia é livre
transita mundos e épocas sempre vívida, sem idade,
revolve as imundícies humanas, suas vísceras e entranhas,
que por razão não absurda, nada mais me estranha.
Já que se poesia não discrimina, nem é ortodoxa, tampouco contida,
por que haveria de ser
que esta pobre velha a sofrer
não tivesse no poema sua ferida?

domingo, abril 10, 2011

amor terminal

Não chores, meu amor,
não chores mais
pela saudade triste
pelo nefasto vão
que nos separa
por mais de 1000km
que a distância insiste
desta cidade vil até o Maranhão.


Não és tu quem é doente, não
nem quem sofre de maus humores
que corroem a alma,
definham o corpo,
matam a ilusão.
Sou eu o câncer enraizado,
sou eu a peste em ressurreição
que das mortes épicas da Europa,
ao castigo diuturno do Sertão,
apunhalam minha medula,
                           infectam minha carne,
                           destroem meu pulmão.

Não chores viu, não chores não:
eu cá que sou terminal
e tu és o redentor.
Em mim habita este mal que
de minha existência é feitor:
                               das suas mãos brotam a agonia
                               dos seu olhos, meu furor
                               da sua ira, minha febre,
                               da minha doença, por ti,
                               o meu amor.

Não chores, meu bem, não mais
eu já suplico pelo ópio, pela morfina, pela paz
não sossego, nem durmo,
nem sinto pena do meu fim.
Sei que em breve minha dor,
minha dispneia, meu palor,
meus fluidos hemáticos
serão findados num exato prazo
que esta distância se extinguir.
Eis portanto a minha cura,
pois no longe sou loucura,
já que te ti sou metastático.

explode a poesia

Ao poeta Ferreira Gullar que certo dia me emudeceu.

Ele me deixou sem voz
             sem rumo.
             Sempre esteve ali,
             poesia latente, insone.
Eu que na correria
nunca vira.
Eu que na correria que me consome
Nunca deixei gritar sua voz
                                   sem pudor
                                   dilatada e infame
                                   Soar o desejo do mundo,
                                   desejo do abismo,
                                   do caos e da fome.
Romper ligeiro o que me espanta
                                   e afronta.
Extraindo o fel
               o cerne
               o sangue
               o gozo
               o sumo.
Mas agora
   mudo
     sozinho
       sem rumo,
           sumo.


Eu que na correria que me consome,
Correria do trabalho
mal pago
insalubre
pobre
precoce
Dos dias que findam sem lógica sem ação ou propósito
Ou dos casos mal amados
dos corpos nus ali debruçados
que com álcool embriagam
depois fogem
malditos, torpes
nunca percebi
sua existência atroz, louca e viciada.

Foi preciso um bofete,
o acaso pra emudecer meu mundo
e ouvir com calma aquele velho que veio do norte
enrugado
feio
sem sorte
        Falando duma poesia impura
        suja
        sem dono.
Poesia atemporal
que nasce agora
ou há 30 anos
numa fotografia qualquer
empoeirada.


É que nunca percebi
                         (com a correria que me consome e que só agora para)
que o velho de história triste
                         olhar medonho
que tirou minhas pernas, meu ar
                         seu velho enfadonho!
é aquele infeliz
de crina gris
de dentes amarelos
igual laranja podre
que tem sua poesia úmida
cheia de ruídos
de secreções
e odores
e quando criança
               filho de dona Alzira
da denúncia
do desassossego
dos desamores
corria seminu
naquela ilha de pretos velhos
serpentes
mitos
minas
tambores.


Seu nome
pobre insano
sequer me atrevo.
É que ainda reluto
asfíxico
mudo
díssono
sôfrego
com uma dor tremenda
                          parida
                         doente
         cheia de covardia.

Mas como não posso
deixar que esta agonia
minha vista embace
saio correndo pela rua
bambo
sem juízo
cego
sem disfarce,
e,
temendo gritar
e como tu, infeliz,
ganhar o choro
a esquizofrenia,
beijo o asfalto e uno minha saliva ao teu cuspe
                                           repugnante enlace,
                                           desespero faminto
                                      meu corpo em êxtase
                                             quase um enfarte.
                   Ira corroendo terra
                   noite estuprando dia:
                   Eu puro!
                   É que explode
                   em mim
                   poesia.

sábado, janeiro 29, 2011

inverno

Chega de despedidas
chega de tanta
saudade.

                                 Hoje o dia até que prometia sol.
                                 Veio a chuva.

Perdi o tato
pra certas coisas
uma delas este sentimentalismo a flor da pele
quase barato
coisa de quem se sente superior
olhar vago
mente elevada
coração bradicárdico.

                                 Hoje até que prometia sol
                                 eu é que estava já
                                 nublado.

E veio a chuva.
- Ore, é falta de Deus! Dizia minha mãe.
- É falta de mim, mãe.
- É saudade de mim.

                                Hoje o dia até que prometeu sol.
                                Eu que não vi...
                                Ainda sou chuva.

domingo, janeiro 23, 2011

grand finale

Blém-blém-blémbléim-blém. A igreja... Sete horas.

A cidade amanheceu vazia, cheia de ressaca. O sol da manhã ardia o asfalto coberto de tiras de papéis, latas e secreções...


Dia anterior


- Acode meu povo, repara que é briga!
- O quê? Quem foi?
- O Chico caiu de paulada no Manel ali no meio da praça, minha gente, corre pra apartar!
- Valei-me, vambora ligeiro que rebuliço com Chico é morte certa!


Minutos mais cedo


A praça lotada. Não via tanto furdunço assim fazia tempos. Era gente, suor, calor, cerveja quente e uma música qualquer que naquelas alturas ninguém sequer tinha noção do que se tratava, apenas passavam, pulavam, sujavam-se e faziam amizades sinceras de infância, tudo na espera da grande banda da noite – o “grand finale”.

Era carnaval, minha gente...

Desde cedo o frisson era geral. Vinha gente de toda parte: das cidades vizinhas, da capital, doutros Estados, vinha inclusive eu. Não pro carnaval, certamente; vinha porque coincidentemente tinha férias naquela ocasião e me furtava de saudade o peito. Saudade dos meus. Mas não podia deixar de compartilhar sensações e experiências no meio de todo aquele movimento. Estava sentado no banco do ônibus que vinha do aeroporto mais próximo para aquela cidadezinha e, atento, observei o diálogo.

- Eita, seu moço, ta viajando pra onde?
- Eu tô indo dar um pulo ali pra passar o carnaval.
- Mas o senhor ta indo mesmo só pra brincar o carnaval.
- Não rapaz, que é isso?! Eu não brinco carnaval! Carnaval pra mim é coisa séria!

De fato, era coisa séria por ali mesmo. Interditaram as ruas, pintaram as calçadas, encerraram cedo as lojas, até a Igreja fechou. Anunciaram que a missa do domingo fora excepcionalmente adiada. É que fica muita zoada na rua. Justificavam os fiéis já com a lata de cerveja na mão e com a cara toda suja de maisena. Sim, isso mesmo, toda suja. Carnaval ali era desse jeito: todo mundo se melava, mudava de sexo, mijava de madrugada na porta da casa dos parentes chatos e se dormia por onde dava mesmo. Noutro dia ninguém se lembrava de nada e seguiam adiante.

Foi no meio disto tudo que a banda tão esperada começou. Eram os fantásticos de não sei onde e cantavam uma coisa qualquer. O som era tão alto, tão absurdamente alto que tenho certeza que nenhuma viv’alma dava conta de entender o que era aquilo que gritavam. Mas quanto mais alto melhor, é festa afinal. Todos deveriam ficar embriagados, seja de álcool ou de labirintite mesmo. E no meio da celeuma, do empurra empurra, zás, o som ficou mudo. A sensação é a que de repente se fica oco, como se a música fosse um pesado e grosso fardo. E de fato era, só que naquelas condições ninguém chegava a qualquer refinamento filosófico.

- Calma, minha gente, é que o fio da guitarra torou*!

Foi meu juízo que “torou” naquela hora. Era demais. Peguei meu corpo e levei embora. No caminho de casa escutei um zum-zum-zum duma briga que foi parar no hospital, no necrotério e na delegacia. Mas tudo bem – diziam. Era carnaval.

Peguei no sono ligeiro, acordei sem ressaca e fui andar pela cidade na quarta-feira de cinzas...





*torar = forma não gramaticalmente correta do verbo romper, partir...

sexta-feira, janeiro 07, 2011

missiva póstuma

Gostaria ter sido apenas ficção. Apenas aqui e nunca mais.
Querido vovô,

Ontem viajando rumo a sua casa, lembrei o igual caminho inverso que fizemos juntos há vinte anos quando memoravelmente celebramos os seus setenta anos. E como filme, veio à mente todos os instantes que nós dividimos, desde a minha infância, contanto estrelas sentados à porta e ouvindo histórias mirabolantes dos tempos de outrora, passando pelo crucial instante que parti desta cidade – nossa primeira cisão – que, inocentemente, sequer imaginava que a partir daquele momento nossos encontros seriam apenas em minhas férias, afinal a vida acadêmica havia apenas começado.

Os anos passaram, vovô, e nunca perdi o encantamento da sua presença e de suas estórias, mesmo que por vezes repetidas, sempre soavam como ensinamento, como lição de vida, algo a ser seguido. Talvez, pela agitação da vida, do trabalho e de tudo que nos acerca, tenha perdido os olhos de criança que deixei com o senhor, aqui nesta cidade, guardado carinhosamente, sempre na esperança de me entregá-los novamente quando voltasse em definitivo. Falhei com o senhor. É que sua figura sempre fora a de um super herói! Super heróis são infalíveis, são imortais... Era só ilusão de menino.

Com o meu trabalho, aprendi cedo a lidar com a morte de outrem e encara-la com paciência e respeito, sempre cauto e seguro. Mas quando chegou a notícia, não pude evitar, a perplexidade habitou meu olhar. Doeu. Doeu pra valer. Não sei explicar o quanto. Não há palavras. Senti revolta, sabe vô. Por que o senhor não me esperou? Por que não me deixou ao menos tentar? Faço tanto pra muitos e logo com o senhor sequer puder lutar! Fiquei muito frustrado.

Então vieram as mensagens, os telefonemas. É assim, meu filho, temos que aceitar! Mas, vovô, eu estou aqui para lhe dizer veementemente que não aceito coisa alguma! Aceitar passivamente as coisas é concordar com as atrocidades do mundo, com a iniqüidade das pessoas, é compactuar com o malfazejo, com os contratempos e as intempéries e isto o senhor não me ensinou a ser! Sempre me disse que um homem de caráter e vergonha deve lutar pelos ideais e, de maneira alguma, deve aceitar que lhe tomem as rédeas da vida. O senhor foi um exemplo de tal conduta. Mesmo com a vida cheia de perdas precoces – seu pai, os irmãos, sobrinhos e o filho querido – nunca lhe foi empecilho ter fé, seguir adiante, lutar e vencer. Pelo contrário, o senhor mesmo sempre mantinha viva a lembrança de todos que partiram e assim nunca deixava que a morte lhe tomasse proveito ou zombasse de sua família. Isto jamais! Esta é uma lição, vô, que só aprendi agora, mesmo sem poder ouvi-la de sua boca. Morrer é apenas mudar o canal de comunicação. É deixar o ser humano físico e assumir a existência metafísica em que não há limites de corpo, de tempo ou espaço; é ser livre sem limites e habitar o coração de todos aqueles que guardarem em si uma lembrança carinhosa da fraterna convivência familiar, por mais fugaz que ela possa ser; é ser de fato imortal.

Então, vovô, deixe que levem este corpo atérmico, pálido e inerte. Ele é só testemunha da morte fisiológica. Este não é mais o senhor! É apenas composição orgânica que, por ser fruto da terra, retorna à terra em seu leito nefasto e morredouro que corrói os corpos e os corações dos homens de pouca fé e isto não somos nós. Somos fortes. Sei que paradoxalmente agora diz que está feliz por ver a família reunida. Estou aqui para selar este pacto com eles e com o senhor, viu. Não se preocupe, está tudo organizado! Pode seguir adiante, sem medo, porque aqui dentro, bem profundamente, o senhor continua mais vivo do que nunca.

Do neto que lhe adora.