Tenho tanta saudade de mim...

quinta-feira, novembro 15, 2018

litania de Mariinha

ela tricota as ruas de pedra
entrelaçando-as com perninhas ligeiras
aos fins de tarde, carrega tristeza,
uma sacola, poucas velas e um terço

passa na vizinha, leva-a consigo
testemunha deste cerzir antigo
de memórias dilaceradas de tempo
emendadas ao horror do esquecimento

lá debulha seu rosário em silêncio
como uma espiga de terra má e avarenta
poucos grãos catados, o alimento
pouca alegria de viver
um lamento

curvada sob lápide fria, ela segue
o ritual da vigília patente
todo dia esta velha se encolhe
à morte do filho, silente.

domingo, junho 10, 2018

Reinações de Magdalinha

À minha vó.

Eu vivia no Diamante e mesmo que todo mundo dissesse que a gente era rico, vivíamos uma riqueza modesta. Afinal, tantos filhos: um no colo, outro na barriga. Assim foi por muitos anos a fio. Foram 10 crianças no total, um casarão com número igual de janelas fincado no meio de uma vacaria com um jardim na frente, um canavial ao fundo e um cata-veto chegado de navio.
Era um lugar que cheirava liberdade, mas ali quase tudo era proibido.
Descer até o poço? Não podia.
Subir no alto da mangueira? Não podia.
Ir sozinho na vacaria? Lá também não podia.
- Tá cheio de homem, meu pai dizia. Não é lugar de moça!

Um dia, na parte da frente da casa, perto do roseiral, construíram um tanque bem grande e redondo. A água bem friinha. Pronto, nossa piscina!
- Menino não pode entrar neste tanque! Vociferava, mamãe.
Ora bolas, era tanta proibição que nem tinha graça. Os outros meninos tinham medo de enfrentar a fera. Eu ia sozinha mesmo. As vezes o Zé ia comigo. Jesus, essa, não fazia nada dessas coisas, só estudava. Por isso se deu bem na vida, hoje tem uma aposentadoria gorda e tudo mais. Mas eu, ah, eu lá queria saber de estudo? E metia a cara e enfrentava a velha:
- Banhar nesse tanque eu não posso, mas a cabeça nele eu vou enfiar...Vamo, Zé, conta quanto tempo eu aguento?
Eu ia pra mais de minuto sem respirar. O Zé que contava. Eu era danada. Ganhava na disputa de tudo quanto era moleque daquela rua. Ninguém me podia.

Lá também tinha uma limeira. Quando dava o tempo, quase os galhos se partiam de tão carregada que ficava. Tudo amarelinho. Que lima gostosa. Lima é fruta de velho, mas eu sempre gostei de lima, sempre.
Eu sumia com todas as facas da casa para poder descascar as frutas. Passava a tarde inteirinha sentada debaixo do pé. Só terminava mesmo quando tinha que correr na hora que dava vontade de fazer xixi e lá esquecia o diacho da faca.
- Ninguém mais pode levar faca de cozinha!
Pronto, mais outra proibição. Mas o castigo que veio depois foi bem pior. 
Fizeram um cercado aumentando a área da vacaria e deixaram a limeira dentro. As vacas se passaram a roer o tronco da árvore e lá a limeira morreu. Assim também foi com a da cajá-do-Pará. Morreu tudo. Parece até que faziam isso de ruindade.
Como eram doces! Até hoje me lembro. É que tudo ali era doce. Até o tamarindo, veja só. Nunca vi tamarindo doce, só azedo, mas ali era um mel. Vai ver que a terra era boa, ou a infância que era.

Quando dava sete horinhas, depois da radionovela O Direito de nascer, não tinha mais rádio nem nada, o jeito era dormir. E logo o sono me pegava...
Eu me lembro. Eu era a menina que andava no meio do canavial e que tinha uns desejos simplórios. Minha maior vontade era de um dia chegar com o cabelo molhado no colégio. Não sei porquê isso. Vai ver que as meninas que iam de carro chegavam de cabelo encharcado e eu que ia à pé, nada.
Aí eu tomava banho  todo dia bem cedinho com a água fria de doer os ossos. Ninguém me mandava, eu que queria mesmo. Daí deixava o cabelo ensopado. E saía às pressas pra chegar na escola com eles pingando: subia até a rua Grande, atravessava a Deodoro, descia a rua da Paz, cortava a João Lisboa para chegar à rua do Egito. Antes mesmo de alcançar o norte da África da capital ludovicense, o cabelo já tinha secado. Uma droga! Mas noutro dia tentava de novo. Um dia ele chegaria molhado.

quinta-feira, abril 19, 2018

o perfume dos sebos que salvam o mundo

Qual o cheiro dos poemas d’agora?
Dantes ásperos e amarelos
com dobraduras cosidas
às brochuras antigas
e dobradas orelhas.

Como se nos atrevem os versos?
Ao acaso do folhear
ou no instante do clicar
sobre o gadget* o dedo?

Há pós vida cibernética?
Há nela herança sintática?

Em bits** frenéticos
agitam-se os dados
e persistem os loucos
que creem que o olfato
de livros são antídotos.


*gadget = do inglês; equipamento eletrônico complexo criado para exercer uma função específica do dia-a-dia.
**bits = informática; menor unidade de informação que pode ser transmitida ou armazenada.

segunda-feira, abril 16, 2018

as esquinas de meus espiamentos

Outro dia vi um poema.
Estava a brincar pelas ruas,
em ruas sem calçamento.
O poema gosta de ruas de terra,
ele gosta de chão.
Chão!
Ah, esse monossílabo tônico
soa um assombro!
Quisera o vernáculo eleger tão encolhido nome
para a imensidão
e a dureza
do chão?

Pois bem, o poema morava perto dele,
as orelhas a encostar sobre sua pele grossa
cheia de areia, os grãos,
ouvindo o tum-tum, tum-tum, tum-tum
da Terra.
E desfalecia inocente, a escorrer baba pelo canto da boca
Igual: eu, criança, no cangote de minha mãe.

O poema gosta também de cangotes.
E de todas as palavras feias que tenham cheiro bom
como cangote.

Noutro dia, quase o perco de vista.
Há de se concentrar para acha-lo sempre.
E me pergunto: haveria poema até na dor-de-ouvido?
Seria como se ele batesse à porta do tímpano, pedindo:
- Ei, não me olvide!

São tempos de esquecimentos.
É que imaginam o poema solene
A tomar chá-das-cinco com bolachas farinhentas 
rodeados de barbudos comendadores
proferindo substantivos apetitosos de uma quase-outra-língua
e o poema a engordar-se bonachão e passivo.

Não! O poema está na dureza das coisas
na sangreza das mortes
nas respostas não ditas
e naquelas explícitas.
Há naqueles olhos do algoz inclusive
uma cruel poesia.
Não a viram ainda, ou se a viram, acharam feia;
e como todas as feiúras do mundo, baniram da mídia.
Status desconhecido.
Sem amigos em comum,
sem eventos na agenda.
Mesmo as poesias mais adocicadas
entraram em dieta
andam a tomar insulina
beirando coma cibernético.

Por isso outro dia quando vi
o poema a brincar pelas ruas, 
não fiz alarde,
parei apenas
fiquei bem quietinho
escondido na esquina
olhando-o traquina
sendo feliz um segundo
rindo como ele:
menino.

sexta-feira, março 30, 2018

As miudezas e os encurtamentos de ruas

A rua ficou menor.
As pedras são as mesmas,
os muros,
seus musgos...
O musgo que sempre fora invisível
até o momento em que ouvi numa aula de biologia
que ali haveria esporófitos
e anterídios
nomes tão invisíveis quanto os seus donos.
Duvidei.
Voltei ao quintal de minha avó,
aumentei o olhar e os vi pequenos
e descobri que de perto há certas coisas incríveis:
o mundo daqueles espécimes minúsculos
com suas coifas e esporos
povoam muros
e envelhecem o mundo visível dos homens.

Com este mesmo olhar apurado de miudezas,
dei-me conta da rua que se encurta.
Não que houvera um novo prefeito
e seus urbanismos de cortar casas
com máquinas tão enormemente forjadas a partir os tais muros
como espátula que desfere sobre a pasta americana dos bolos seu golpe de misericórdia.
Nem mesmo os abalos sísmicos
ou eventos cataclísmicos, não!
Nada se moveu.
A rua que ficara pequena.

Nada poderia ser mais poético
que uma rua que, ao seu final, ajoelha-se à margem dum rio
entrega seus vestígios para a eternidade do oceano
mesmo que incerto
mesmo que a distância de talvez 752 quilômetros (ou menos)
por suas curvas e quedas e remansos
a rua tem se deixado levar
e se liquefazer, fugindo, como a mãe que corre para perto dos filhos
que ao longo da vida partem
e levam
consigo
um pedaço de rua.

segunda-feira, março 12, 2018

esconderijo de mariposas

Corram! 
Tirem suas roupas
As amarras todas
Os dentes, desatem-nos
Ele tem pressa
Vão!
Libertem-no
O dia já nasce
As cores explodem
O suor banha sua cara
E ele ainda está à espreita
Ligeiro! O campo o espera!
Muitas flores ali
Muitos aromas não sentidos,
                           ainda
O gosto da terra, a umidade, o frescor dela
Rápido, minha gente.
Corram! Soltem-no!
Libertem suas asas
Que ainda há de beijar muitas bocas
Provar muitos corpos
Mas agora, agora não pode
Por isso, deixem-no ir
Não o prendam
Deste livro de antigos estúpidos
E atuais espúrios,
Ele não deseja qualquer salvação.
Ele só quer o mundo
Abram o armário,
E que ele voe borboleta.

A poesia visita uma vila de pescadores

O poema nasce no lamaçal do mangue
No titilar dos bilros da rendeira
Sob as asas d’aves cujos nomes esqueço
Na velha sentada à porta
No fuxico de Maria, sua vizinha
No rosário de preto
Na palavra não dita

Nasce sob sol forte
Suando a fronte ao meio dia
Do pescador de anchovas
E de muitas outras barbatanas
Numa ilha de inexatos olhares
De frutos de cajarana
Nos confins da terra da latitude zero

Surge mais do silêncio
Do além-vir
Do etéreo
A epifania dos loucos
Que teimam seguir

Na verdade mesmo ele sempre existiu
Basta um olhar
Um sentimento humano
Os pelos eriçando ao vento
Uma tarde de domingo
Basta existir
E o poema vive
Dentro de nós.

sábado, janeiro 27, 2018

O capitalismo das emoções

guarda meu olhar
sente, sou eu, esta pele
o que pulsa, o que escorre
pelos veios, pelas veias
guarda meu olhar
vê bem dentro de mim
se teremos amanhã 
se seremos amanhã 
só guarda
sente
não precisamos de qualquer
equipamento eletromagnético
de compartilhamentos cibernéticos
o instante é raro
então só guarda
meu amor genuíno
este olhar que é de agora, só agora
nunca mais, menino
este céu
a luz
o som
o ângulo de tua boca adiante da faixada do prédio antigo
não vendamos nossa felicidade
ao capitalismo das emoções.

sábado, janeiro 13, 2018

carreira de marimbondo

lá no alto daquele pé-de-pau
uma casa de marimbondo-chapéu
corre, menino, zás!
uma pedra no ar se perdeu

um toco, menino, melhor
rebola bem alto, lá incima
dispara, pequeno, ligeiro
se te pega, ele te amofina

deixa disso, criança, pra quê?
larga a casa do bicho em paz
a belezura desse mundo não tem
marimbondo no mato, não mais

tanto fogo, carvão e fumaça 
asa branca, anjinho, chapéu
meu sertão, não mais sua morada
voaram, arriscaram outro céu.

terça-feira, janeiro 02, 2018

descendo a rua da Palma nos finais de semana e às vésperas de feriados

na Palma
cabe o universo
o futuro
o etéreo

passado


no
beco

tombam bêbados
uivam loucos
desfilam
           gressores
     
trans ➟ gêneros
     
          viados

humanos
         geneticamente
                       melhorados

a palma

da mão nua
a rua
dos pecados

em ritmo quente

aplauso ovaciona
o gatilho aciona
do esperma
ejetado

segunda-feira, janeiro 01, 2018

Presente dos 10 anos

A infância dum menino deve ser:
bola pião pipa e peteca
mas lá na minha infância
peteca era o que, já grande, me diziam ser bola de gude
é nada, bola de gude nem existe
a peteca, sim
sem pena, rompia o vidro fundido doutras petecas
sem pena, minha peteca ganhava quintais
todas as tardes naquela cidade de petecas sem penas
os quintais dos meus vizinhos
e doutros que nem conheço
eram os campos de meus emperdecimentos
naqueles lamacentos terreiros das quartas-feiras
depois da bola às 4 da tarde no campinho dos padres
a noite rasgava o tecido do céu
até sangrar o horizonte
o sangue do universo era laranja
e o tintilar das petecas irritava Maria
que nos mandava parar de gritar.

Nos quase 10 anos daquela infância que era minha
vovô, mais menino que eu, me chamou:
- Vem aqui, rapazinho, rapidinho.
Pôs uma ripa de buriti e me mediu:
- Pronto, pode ir.
Esqueci das medições de meu avô.
Ele era dado a organizar coisas, mesmo.
A controlar o tempo,
a governar tudo.
A propósito, nos seus quintais não se brincava muito
ali era das meninas: minhas irmãs, umas primas,
das suas panelinhas, bonecas e preparações da vida adulta.

No final da rua cortava um rio fino, raso, bem raquítico
nem perigoso, nem nada
mas pra quê ter rio, mesmo?
- Sem adulto, lá é proibido!
A maior exploração indiana jhonica de minha vida
foi ousar tomar banho debaixo da ponte numa tarde
eu e minha meninice sozinhos.
Os sinos da igreja dobrando seis horinhas gritavam
Belémbembem, vai pra casa! Belémbembem, vai pra casa!
E agora, criminosa criança?
Teus olhos em chama são tua denúncia
colírio o quê, só um mantra:
- Cu de pinto, cu de pato.
Sopra na mão em cunha e vai cobrindo o olho de cada lado.

Aí, nos meses de julho, nas férias,
vinha gente de todo lado: primos, amigos, parentes
dumas cidades de petecas diferentes
e eu não muito gostava.
Mas naquele julho de mil novecentos e noventa e poucos
que os preços dos bombons mudavam todos os dias
era também o mês que eu perdia
uma porcentagem de menino:
tinha ganhado enfim dois algarismos!
As pessoas arrastam dois algarismos por toda uma vida
e geralmente vão pra debaixo da terra com eles
isso quando se morre de morte morrida...
só um velho ali da esquina que já tinha pra mais de cem
ainda teimava em ser gente.

Pra festejar a sina que me deram: a de ser humano
meu vô desvendou finalmente o mistério
a pipa que ele me fez de presente
era exatamente do meu tamanho!
Não é tempo de pipa ainda, tem o da peteca, do pião, só depois...
Guardei o papagaio num canto
e esperei que o tempo ventasse forte, em nós.
Mas chegou bem ligeiro como sempre chegava
o vento e tanto menino pescando o céu
toda tarde era uma beleza:
uma algazarra que nem sei se existe mais.

A pipa de um metro e pouco finalmente saiu aquele dia pro seu voo inaugural
o papagaio tanto rangia
com uma força de vento tal
que meu pai me tomou o barbante
e foi ele o comandante da nossa ida ao céu.
Vovô era arteiro de verdade!
Não fizera a pipa só pra mim
quisera ele que o meu pai, seu filho,
fosse de novo menino
logo comigo, assim.

menina-noite

A menina camuflada de noite
abre as frestas da alma
Ilumina, menina,
ilumina!
que o preto da tua pele brilha
É pra ti que existe a poesia
É pela força de teus filhos não paridos
Pelo sol que evapora de teus poros
Pelo mar que escorre dos olhos
dum continente ancião invadido
sequestrado e banido.

Ah menina vestida de noite
dança nos meus sonhos, vem,
tece com tuas pernas os caminhos:
as ruas, nuas, são tuas,
menina de Ébano.
Abre de novo as frestas d’alma, abre.
Ilumina! Ah, ilumina!
O mundo precisa sempre, e mais, e de novo
dos teus doces
e tão antigos olhos.