Tenho tanta saudade de mim...

sábado, janeiro 27, 2018

O capitalismo das emoções

guarda meu olhar
sente, sou eu, esta pele
o que pulsa, o que escorre
pelos veios, pelas veias
guarda meu olhar
vê bem dentro de mim
se teremos amanhã 
se seremos amanhã 
só guarda
sente
não precisamos de qualquer
equipamento eletromagnético
de compartilhamentos cibernéticos
o instante é raro
então só guarda
meu amor genuíno
este olhar que é de agora, só agora
nunca mais, menino
este céu
a luz
o som
o ângulo de tua boca adiante da faixada do prédio antigo
não vendamos nossa felicidade
ao capitalismo das emoções.

sábado, janeiro 13, 2018

carreira de marimbondo

lá no alto daquele pé-de-pau
uma casa de marimbondo-chapéu
corre, menino, zás!
uma pedra no ar se perdeu

um toco, menino, melhor
rebola bem alto, lá incima
dispara, pequeno, ligeiro
se te pega, ele te amofina

deixa disso, criança, pra quê?
larga a casa do bicho em paz
a belezura desse mundo não tem
marimbondo no mato, não mais

tanto fogo, carvão e fumaça 
asa branca, anjinho, chapéu
meu sertão, não mais sua morada
voaram, arriscaram outro céu.

terça-feira, janeiro 02, 2018

descendo a rua da Palma nos finais de semana e às vésperas de feriados

na Palma
cabe o universo
o futuro
o etéreo

passado


no
beco

tombam bêbados
uivam loucos
desfilam
           gressores
     
trans ➟ gêneros
     
          viados

humanos
         geneticamente
                       melhorados

a palma

da mão nua
a rua
dos pecados

em ritmo quente

aplauso ovaciona
o gatilho aciona
do esperma
ejetado

segunda-feira, janeiro 01, 2018

Presente dos 10 anos

A infância dum menino deve ser:
bola pião pipa e peteca
mas lá na minha infância
peteca era o que, já grande, me diziam ser bola de gude
é nada, bola de gude nem existe
a peteca, sim
sem pena, rompia o vidro fundido doutras petecas
sem pena, minha peteca ganhava quintais
todas as tardes naquela cidade de petecas sem penas
os quintais dos meus vizinhos
e doutros que nem conheço
eram os campos de meus emperdecimentos
naqueles lamacentos terreiros das quartas-feiras
depois da bola às 4 da tarde no campinho dos padres
a noite rasgava o tecido do céu
até sangrar o horizonte
o sangue do universo era laranja
e o tintilar das petecas irritava Maria
que nos mandava parar de gritar.

Nos quase 10 anos daquela infância que era minha
vovô, mais menino que eu, me chamou:
- Vem aqui, rapazinho, rapidinho.
Pôs uma ripa de buriti e me mediu:
- Pronto, pode ir.
Esqueci das medições de meu avô.
Ele era dado a organizar coisas, mesmo.
A controlar o tempo,
a governar tudo.
A propósito, nos seus quintais não se brincava muito
ali era das meninas: minhas irmãs, umas primas,
das suas panelinhas, bonecas e preparações da vida adulta.

No final da rua cortava um rio fino, raso, bem raquítico
nem perigoso, nem nada
mas pra quê ter rio, mesmo?
- Sem adulto, lá é proibido!
A maior exploração indiana jhonica de minha vida
foi ousar tomar banho debaixo da ponte numa tarde
eu e minha meninice sozinhos.
Os sinos da igreja dobrando seis horinhas gritavam
Belémbembem, vai pra casa! Belémbembem, vai pra casa!
E agora, criminosa criança?
Teus olhos em chama são tua denúncia
colírio o quê, só um mantra:
- Cu de pinto, cu de pato.
Sopra na mão em cunha e vai cobrindo o olho de cada lado.

Aí, nos meses de julho, nas férias,
vinha gente de todo lado: primos, amigos, parentes
dumas cidades de petecas diferentes
e eu não muito gostava.
Mas naquele julho de mil novecentos e noventa e poucos
que os preços dos bombons mudavam todos os dias
era também o mês que eu perdia
uma porcentagem de menino:
tinha ganhado enfim dois algarismos!
As pessoas arrastam dois algarismos por toda uma vida
e geralmente vão pra debaixo da terra com eles
isso quando se morre de morte morrida...
só um velho ali da esquina que já tinha pra mais de cem
ainda teimava em ser gente.

Pra festejar a sina que me deram: a de ser humano
meu vô desvendou finalmente o mistério
a pipa que ele me fez de presente
era exatamente do meu tamanho!
Não é tempo de pipa ainda, tem o da peteca, do pião, só depois...
Guardei o papagaio num canto
e esperei que o tempo ventasse forte, em nós.
Mas chegou bem ligeiro como sempre chegava
o vento e tanto menino pescando o céu
toda tarde era uma beleza:
uma algazarra que nem sei se existe mais.

A pipa de um metro e pouco finalmente saiu aquele dia pro seu voo inaugural
o papagaio tanto rangia
com uma força de vento tal
que meu pai me tomou o barbante
e foi ele o comandante da nossa ida ao céu.
Vovô era arteiro de verdade!
Não fizera a pipa só pra mim
quisera ele que o meu pai, seu filho,
fosse de novo menino
logo comigo, assim.

menina-noite

A menina camuflada de noite
abre as frestas da alma
Ilumina, menina,
ilumina!
que o preto da tua pele brilha
É pra ti que existe a poesia
É pela força de teus filhos não paridos
Pelo sol que evapora de teus poros
Pelo mar que escorre dos olhos
dum continente ancião invadido
sequestrado e banido.

Ah menina vestida de noite
dança nos meus sonhos, vem,
tece com tuas pernas os caminhos:
as ruas, nuas, são tuas,
menina de Ébano.
Abre de novo as frestas d’alma, abre.
Ilumina! Ah, ilumina!
O mundo precisa sempre, e mais, e de novo
dos teus doces
e tão antigos olhos.