Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Nada de efeito. Tic-tac. Faz quase uma hora. Tic-tac, tic-tac. Há três dias, claro. Tic... Pausa. Tac. Precisa de corda o relógio. Tic sem Tac. Zzzzzzzzzzz. Há três dias o mesmo lençol morno, o cheiro de cama dormida, o ar empoeirado. Há uma hora mais um Rivotril... Há três dias um milhão e meio de tic-tacs; agora só, e nada de efeito.
Deitado no banco traseiro do carro via o emaranhado de fios nos postes em ritmo ondulatório contínuo, dançando à velocidade do carro do seu pai, viajando. Quieto percebeu que as coisas se moviam com o desejo dos olhos, afinal, o carro em movimento e ele, parado, tinha o mundo fugindo de si... Mesmo os postes, improváveis, fincados à terra, corriam. E se foi toda uma tarde. Acho que ali deu-se conta da relatividade das coisas. O tempo é o reverso do desejo. Concluiu. Logicamente não com este refinamento grafológico, afinal era criança, mas assim pensou. É que lhe intitularam autista. Gostava de ficar só, direcionava o ouvido a coisas imensuráveis, mantinha a mente num fio irreal de lógica e pensava em voz alta. Como dar satisfação lhe era fardo, aceitava modestamente seu autismo. Sobrava mais tempo e energia assim.
Cresceu no seu tempo e na perspectiva dos olhos e da mente, livres.
Há seis meses conhecera o amor de sua vida. O tempo parou. Há vinte e cinco anos e o mundo sempre fugindo de si. Mas há seis meses... Foi coisa de cinema, de predestinação: final de tarde, beira mar, só, tomava sua água de coco e se entregava ao acaso. Alguém se sentou ao lado. De onde veio, nunca percebeu. Um olhar vago e doce. E lhe sorriu. Trocaram os nomes, deram as mãos e não disseram mais nada. Assim ficaram, quietos, consumidos pelo mar e pelo calor de seus dedos.
Já era lua e se fitaram novamente, desta vez com menos doçura. Volúpia. Beijaram-se. E foi como beijar todo o oceano – molhado, profundo e infinito. Dali nunca mais se separariam.
Em menos de um mês já dividiam o mesmo apartamento, as contas, os lençóis e as secreções. Sem limite cronológico, sonhavam com o futuro concreto. Eram almas gêmeas. Soava esquisito. Afinal, quem nunca aceitou bem que as coisas ocorressem por força de destino, mas por meras escolhas, agora aceitava bem sua condição. É que estava estranhamente apaixonado. E assim pensava menos, e vivia mais. Nunca tinha estado assim, em estado de graça – uma explosão de sabores, de cheiros, de tato. Um lapso de felicidade que já durava cinco meses.
A velocidade supersônica da mente e do coração de repente freou. Há um mês, febre.
- Não quer um médico?! O desespero habitou seu olhar.
- Nada. Você me basta... Fitou-o docemente como a primeira vez e a aflição se abrandou.
Mais uma semana, piorou. Mais febre, tinha tosse e agora lhe queixava das dores, muitas dores. Vinha a fraqueza. Quase sem caminhar. E foram ao médico. O primeiro, virose. O segundo, bacteremia. O terceiro, Guillan-Barré. Pela dúvida, internaram. E vieram mais cinco. Puncionaram-lhe o corpo. Sugaram-lhe líquidos. Radiografaram-lhe até a alma. E mais dúvidas.
- É pneumonia. Quero uma broncoscopia! Um dizia.
- Se fizer, não resiste. Retrucava outro.
Duas semanas e o hospital uma Torre de Babel! Assim, o internamento na UTI foi inevitável. Os relatórios eram diários: paciente grave, diziam. Em dois dias e nada mudou exceto aquele superlativo que lhe soou uma hipérbole de loucura. Novo relatório. Gravíssimo! Menos de vinte e quatro horas e a ligação.
- Senhor, sinto muito...
Há três dias quem parou foi o mundo. Há três dias, quem lhe fugia pelas mãos, ligeiro, foi o tempo. Levou sua vida e os seis meses. Ficou nada. Sobrou-lhe apenas o relógio e seu barulho para assegurar que ainda permanecia vivo. Que apenas permanecia.
Agora, nada.