Tenho tanta saudade de mim...

sexta-feira, março 30, 2018

As miudezas e os encurtamentos de ruas

A rua ficou menor.
As pedras são as mesmas,
os muros,
seus musgos...
O musgo que sempre fora invisível
até o momento em que ouvi numa aula de biologia
que ali haveria esporófitos
e anterídios
nomes tão invisíveis quanto os seus donos.
Duvidei.
Voltei ao quintal de minha avó,
aumentei o olhar e os vi pequenos
e descobri que de perto há certas coisas incríveis:
o mundo daqueles espécimes minúsculos
com suas coifas e esporos
povoam muros
e envelhecem o mundo visível dos homens.

Com este mesmo olhar apurado de miudezas,
dei-me conta da rua que se encurta.
Não que houvera um novo prefeito
e seus urbanismos de cortar casas
com máquinas tão enormemente forjadas a partir os tais muros
como espátula que desfere sobre a pasta americana dos bolos seu golpe de misericórdia.
Nem mesmo os abalos sísmicos
ou eventos cataclísmicos, não!
Nada se moveu.
A rua que ficara pequena.

Nada poderia ser mais poético
que uma rua que, ao seu final, ajoelha-se à margem dum rio
entrega seus vestígios para a eternidade do oceano
mesmo que incerto
mesmo que a distância de talvez 752 quilômetros (ou menos)
por suas curvas e quedas e remansos
a rua tem se deixado levar
e se liquefazer, fugindo, como a mãe que corre para perto dos filhos
que ao longo da vida partem
e levam
consigo
um pedaço de rua.

segunda-feira, março 12, 2018

esconderijo de mariposas

Corram! 
Tirem suas roupas
As amarras todas
Os dentes, desatem-nos
Ele tem pressa
Vão!
Libertem-no
O dia já nasce
As cores explodem
O suor banha sua cara
E ele ainda está à espreita
Ligeiro! O campo o espera!
Muitas flores ali
Muitos aromas não sentidos,
                           ainda
O gosto da terra, a umidade, o frescor dela
Rápido, minha gente.
Corram! Soltem-no!
Libertem suas asas
Que ainda há de beijar muitas bocas
Provar muitos corpos
Mas agora, agora não pode
Por isso, deixem-no ir
Não o prendam
Deste livro de antigos estúpidos
E atuais espúrios,
Ele não deseja qualquer salvação.
Ele só quer o mundo
Abram o armário,
E que ele voe borboleta.

A poesia visita uma vila de pescadores

O poema nasce no lamaçal do mangue
No titilar dos bilros da rendeira
Sob as asas d’aves cujos nomes esqueço
Na velha sentada à porta
No fuxico de Maria, sua vizinha
No rosário de preto
Na palavra não dita

Nasce sob sol forte
Suando a fronte ao meio dia
Do pescador de anchovas
E de muitas outras barbatanas
Numa ilha de inexatos olhares
De frutos de cajarana
Nos confins da terra da latitude zero

Surge mais do silêncio
Do além-vir
Do etéreo
A epifania dos loucos
Que teimam seguir

Na verdade mesmo ele sempre existiu
Basta um olhar
Um sentimento humano
Os pelos eriçando ao vento
Uma tarde de domingo
Basta existir
E o poema vive
Dentro de nós.