Tenho tanta saudade de mim...

domingo, junho 10, 2018

Reinações de Magdalinha

À minha vó.

Eu vivia no Diamante e mesmo que todo mundo dissesse que a gente era rico, vivíamos uma riqueza modesta. Afinal, tantos filhos: um no colo, outro na barriga. Assim foi por muitos anos a fio. Foram 10 crianças no total, um casarão com número igual de janelas fincado no meio de uma vacaria com um jardim na frente, um canavial ao fundo e um cata-veto chegado de navio.
Era um lugar que cheirava liberdade, mas ali quase tudo era proibido.
Descer até o poço? Não podia.
Subir no alto da mangueira? Não podia.
Ir sozinho na vacaria? Lá também não podia.
- Tá cheio de homem, meu pai dizia. Não é lugar de moça!

Um dia, na parte da frente da casa, perto do roseiral, construíram um tanque bem grande e redondo. A água bem friinha. Pronto, nossa piscina!
- Menino não pode entrar neste tanque! Vociferava, mamãe.
Ora bolas, era tanta proibição que nem tinha graça. Os outros meninos tinham medo de enfrentar a fera. Eu ia sozinha mesmo. As vezes o Zé ia comigo. Jesus, essa, não fazia nada dessas coisas, só estudava. Por isso se deu bem na vida, hoje tem uma aposentadoria gorda e tudo mais. Mas eu, ah, eu lá queria saber de estudo? E metia a cara e enfrentava a velha:
- Banhar nesse tanque eu não posso, mas a cabeça nele eu vou enfiar...Vamo, Zé, conta quanto tempo eu aguento?
Eu ia pra mais de minuto sem respirar. O Zé que contava. Eu era danada. Ganhava na disputa de tudo quanto era moleque daquela rua. Ninguém me podia.

Lá também tinha uma limeira. Quando dava o tempo, quase os galhos se partiam de tão carregada que ficava. Tudo amarelinho. Que lima gostosa. Lima é fruta de velho, mas eu sempre gostei de lima, sempre.
Eu sumia com todas as facas da casa para poder descascar as frutas. Passava a tarde inteirinha sentada debaixo do pé. Só terminava mesmo quando tinha que correr na hora que dava vontade de fazer xixi e lá esquecia o diacho da faca.
- Ninguém mais pode levar faca de cozinha!
Pronto, mais outra proibição. Mas o castigo que veio depois foi bem pior. 
Fizeram um cercado aumentando a área da vacaria e deixaram a limeira dentro. As vacas se passaram a roer o tronco da árvore e lá a limeira morreu. Assim também foi com a da cajá-do-Pará. Morreu tudo. Parece até que faziam isso de ruindade.
Como eram doces! Até hoje me lembro. É que tudo ali era doce. Até o tamarindo, veja só. Nunca vi tamarindo doce, só azedo, mas ali era um mel. Vai ver que a terra era boa, ou a infância que era.

Quando dava sete horinhas, depois da radionovela O Direito de nascer, não tinha mais rádio nem nada, o jeito era dormir. E logo o sono me pegava...
Eu me lembro. Eu era a menina que andava no meio do canavial e que tinha uns desejos simplórios. Minha maior vontade era de um dia chegar com o cabelo molhado no colégio. Não sei porquê isso. Vai ver que as meninas que iam de carro chegavam de cabelo encharcado e eu que ia à pé, nada.
Aí eu tomava banho  todo dia bem cedinho com a água fria de doer os ossos. Ninguém me mandava, eu que queria mesmo. Daí deixava o cabelo ensopado. E saía às pressas pra chegar na escola com eles pingando: subia até a rua Grande, atravessava a Deodoro, descia a rua da Paz, cortava a João Lisboa para chegar à rua do Egito. Antes mesmo de alcançar o norte da África da capital ludovicense, o cabelo já tinha secado. Uma droga! Mas noutro dia tentava de novo. Um dia ele chegaria molhado.