Tenho tanta saudade de mim...

quinta-feira, abril 19, 2018

o perfume dos sebos que salvam o mundo

Qual o cheiro dos poemas d’agora?
Dantes ásperos e amarelos
com dobraduras cosidas
às brochuras antigas
e dobradas orelhas.

Como se nos atrevem os versos?
Ao acaso do folhear
ou no instante do clicar
sobre o gadget* o dedo?

Há pós vida cibernética?
Há nela herança sintática?

Em bits** frenéticos
agitam-se os dados
e persistem os loucos
que creem que o olfato
de livros são antídotos.


*gadget = do inglês; equipamento eletrônico complexo criado para exercer uma função específica do dia-a-dia.
**bits = informática; menor unidade de informação que pode ser transmitida ou armazenada.

segunda-feira, abril 16, 2018

as esquinas de meus espiamentos

Outro dia vi um poema.
Estava a brincar pelas ruas,
em ruas sem calçamento.
O poema gosta de ruas de terra,
ele gosta de chão.
Chão!
Ah, esse monossílabo tônico
soa um assombro!
Quisera o vernáculo eleger tão encolhido nome
para a imensidão
e a dureza
do chão?

Pois bem, o poema morava perto dele,
as orelhas a encostar sobre sua pele grossa
cheia de areia, os grãos,
ouvindo o tum-tum, tum-tum, tum-tum
da Terra.
E desfalecia inocente, a escorrer baba pelo canto da boca
Igual: eu, criança, no cangote de minha mãe.

O poema gosta também de cangotes.
E de todas as palavras feias que tenham cheiro bom
como cangote.

Noutro dia, quase o perco de vista.
Há de se concentrar para acha-lo sempre.
E me pergunto: haveria poema até na dor-de-ouvido?
Seria como se ele batesse à porta do tímpano, pedindo:
- Ei, não me olvide!

São tempos de esquecimentos.
É que imaginam o poema solene
A tomar chá-das-cinco com bolachas farinhentas 
rodeados de barbudos comendadores
proferindo substantivos apetitosos de uma quase-outra-língua
e o poema a engordar-se bonachão e passivo.

Não! O poema está na dureza das coisas
na sangreza das mortes
nas respostas não ditas
e naquelas explícitas.
Há naqueles olhos do algoz inclusive
uma cruel poesia.
Não a viram ainda, ou se a viram, acharam feia;
e como todas as feiúras do mundo, baniram da mídia.
Status desconhecido.
Sem amigos em comum,
sem eventos na agenda.
Mesmo as poesias mais adocicadas
entraram em dieta
andam a tomar insulina
beirando coma cibernético.

Por isso outro dia quando vi
o poema a brincar pelas ruas, 
não fiz alarde,
parei apenas
fiquei bem quietinho
escondido na esquina
olhando-o traquina
sendo feliz um segundo
rindo como ele:
menino.