Tenho tanta saudade de mim...

segunda-feira, abril 16, 2018

as esquinas de meus espiamentos

Outro dia vi um poema.
Estava a brincar pelas ruas,
em ruas sem calçamento.
O poema gosta de ruas de terra,
ele gosta de chão.
Chão!
Ah, esse monossílabo tônico
soa um assombro!
Quisera o vernáculo eleger tão encolhido nome
para a imensidão
e a dureza
do chão?

Pois bem, o poema morava perto dele,
as orelhas a encostar sobre sua pele grossa
cheia de areia, os grãos,
ouvindo o tum-tum, tum-tum, tum-tum
da Terra.
E desfalecia inocente, a escorrer baba pelo canto da boca
Igual: eu, criança, no cangote de minha mãe.

O poema gosta também de cangotes.
E de todas as palavras feias que tenham cheiro bom
como cangote.

Noutro dia, quase o perco de vista.
Há de se concentrar para acha-lo sempre.
E me pergunto: haveria poema até na dor-de-ouvido?
Seria como se ele batesse à porta do tímpano, pedindo:
- Ei, não me olvide!

São tempos de esquecimentos.
É que imaginam o poema solene
A tomar chá-das-cinco com bolachas farinhentas 
rodeados de barbudos comendadores
proferindo substantivos apetitosos de uma quase-outra-língua
e o poema a engordar-se bonachão e passivo.

Não! O poema está na dureza das coisas
na sangreza das mortes
nas respostas não ditas
e naquelas explícitas.
Há naqueles olhos do algoz inclusive
uma cruel poesia.
Não a viram ainda, ou se a viram, acharam feia;
e como todas as feiúras do mundo, baniram da mídia.
Status desconhecido.
Sem amigos em comum,
sem eventos na agenda.
Mesmo as poesias mais adocicadas
entraram em dieta
andam a tomar insulina
beirando coma cibernético.

Por isso outro dia quando vi
o poema a brincar pelas ruas, 
não fiz alarde,
parei apenas
fiquei bem quietinho
escondido na esquina
olhando-o traquina
sendo feliz um segundo
rindo como ele:
menino.

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