Tenho tanta saudade de mim...

domingo, março 12, 2017

Negra Martinha

À minha trisavó, cujos pais eram(são) anônimos.

Estrangeiro de mim
vou tropeçando nas dobras
das minhas reentrâncias.
O outro na sua completude
me estranha
e dá ânimo às penas que, entre as frestas daqui,
silenciadas em mim
(sou agora o silêncio alheio),
teimam em ingurgitar
e sucumbem na úvula.
O véu do palato coroa
a língua trêmula.

O grito então parido,
nascido de baixo peso,
segue na UTI decerto,
mas é grito!
Inda que intubado,
é grito!
Inda que franzino, mofino,
é grito!
Inda que quase surdo, quase mudo,
é grito!
Assistido por outros, 
meu grito vai vingando sob cuidadosas mãos
que moldam gritos tão mais antigos.
Resiste grito!

Sou os quadris daquelas meninas
os paus dos sacanas
o devaneio do artista
sou a trança da negra
sou joyces, os orixás e mães d'águas, as marianas!
O tambor do quilombo ritma os músculos
estriados de movimentos involuntários
presos, iguais àquelas penas, 
entr'as frestas ósseas da caixa torácica
que porto.

E eis que me surge ela nesta tarde.
Dos confins do esquecimento,
Nêga Martinha - a imbatível mulher!
Cabelos crespos
boca grossa
pelos pubianos à mostra
estuprada aos 14 anos
pelo pai de seus muitos filhos
branco, viúvo, e rico,
era da fábrica seu patrão.
Axé, Saravá, Eparrêi, minha mãe!
Aquela preta sou eu.
- É puta!
A puta gerou meu bisavô - católico fervoroso
A puta que pariu respeitáveis
(um inclusive monsenhor)
quis morrer como fora: puta
negou-se ao sobrenome
do homem
que lhe propôs casamento já moribundo
a puta mais "foda"
feminista sem título
sou ela
nesta casa cuja negritude teima e clareia na cor de minha pele
segue retinta
bem tinta
tintura negra
no meu sangue
na minha vida.