Tenho tanta saudade de mim...

sábado, dezembro 04, 2010

sem título e nada

Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Nada de efeito. Tic-tac. Faz quase uma hora. Tic-tac, tic-tac. Há três dias, claro. Tic... Pausa. Tac. Precisa de corda o relógio. Tic sem Tac. Zzzzzzzzzzz. Há três dias o mesmo lençol morno, o cheiro de cama dormida, o ar empoeirado. Há uma hora mais um Rivotril... Há três dias um milhão e meio de tic-tacs; agora só, e nada de efeito.

Deitado no banco traseiro do carro via o emaranhado de fios nos postes em ritmo ondulatório contínuo, dançando à velocidade do carro do seu pai, viajando. Quieto percebeu que as coisas se moviam com o desejo dos olhos, afinal, o carro em movimento e ele, parado, tinha o mundo fugindo de si... Mesmo os postes, improváveis, fincados à terra, corriam. E se foi toda uma tarde. Acho que ali deu-se conta da relatividade das coisas. O tempo é o reverso do desejo. Concluiu. Logicamente não com este refinamento grafológico, afinal era criança, mas assim pensou. É que lhe intitularam autista. Gostava de ficar só, direcionava o ouvido a coisas imensuráveis, mantinha a mente num fio irreal de lógica e pensava em voz alta. Como dar satisfação lhe era fardo, aceitava modestamente seu autismo. Sobrava mais tempo e energia assim.

Cresceu no seu tempo e na perspectiva dos olhos e da mente, livres.

Há seis meses conhecera o amor de sua vida. O tempo parou. Há vinte e cinco anos e o mundo sempre fugindo de si. Mas há seis meses... Foi coisa de cinema, de predestinação: final de tarde, beira mar, só, tomava sua água de coco e se entregava ao acaso. Alguém se sentou ao lado. De onde veio, nunca percebeu. Um olhar vago e doce. E lhe sorriu. Trocaram os nomes, deram as mãos e não disseram mais nada. Assim ficaram, quietos, consumidos pelo mar e pelo calor de seus dedos.

Já era lua e se fitaram novamente, desta vez com menos doçura. Volúpia. Beijaram-se. E foi como beijar todo o oceano – molhado, profundo e infinito. Dali nunca mais se separariam.

Em menos de um mês já dividiam o mesmo apartamento, as contas, os lençóis e as secreções. Sem limite cronológico, sonhavam com o futuro concreto. Eram almas gêmeas. Soava esquisito. Afinal, quem nunca aceitou bem que as coisas ocorressem por força de destino, mas por meras escolhas, agora aceitava bem sua condição. É que estava estranhamente apaixonado. E assim pensava menos, e vivia mais. Nunca tinha estado assim, em estado de graça – uma explosão de sabores, de cheiros, de tato. Um lapso de felicidade que já durava cinco meses.

A velocidade supersônica da mente e do coração de repente freou. Há um mês, febre.

- Não quer um médico?! O desespero habitou seu olhar.
- Nada. Você me basta... Fitou-o docemente como a primeira vez e a aflição se abrandou.

Mais uma semana, piorou. Mais febre, tinha tosse e agora lhe queixava das dores, muitas dores. Vinha a fraqueza. Quase sem caminhar. E foram ao médico. O primeiro, virose. O segundo, bacteremia. O terceiro, Guillan-Barré. Pela dúvida, internaram. E vieram mais cinco. Puncionaram-lhe o corpo. Sugaram-lhe líquidos. Radiografaram-lhe até a alma. E mais dúvidas.

- É pneumonia. Quero uma broncoscopia! Um dizia.
- Se fizer, não resiste. Retrucava outro.

Duas semanas e o hospital uma Torre de Babel! Assim, o internamento na UTI foi inevitável. Os relatórios eram diários: paciente grave, diziam. Em dois dias e nada mudou exceto aquele superlativo que lhe soou uma hipérbole de loucura. Novo relatório. Gravíssimo! Menos de vinte e quatro horas e a ligação.

- Senhor, sinto muito...

Há três dias quem parou foi o mundo. Há três dias, quem lhe fugia pelas mãos, ligeiro, foi o tempo. Levou sua vida e os seis meses. Ficou nada. Sobrou-lhe apenas o relógio e seu barulho para assegurar que ainda permanecia vivo. Que apenas permanecia.

Agora, nada.

quarta-feira, outubro 20, 2010

cara, meu caro

Segunda- feira. Noite fria e barulhenta naquela São Paulo, vinte e três horas, quinze minutos, alguns segundos, pernas e gemidos.

- Não sei se é amor. Acho que isso não tem nome. Só sei que é bom...

Ela riu, virou o corpo, dormiu.

Ele, perplexo, levantou-se, vestiu a roupa e saiu.

Assim havia sido sua vida há tempos. Uma prostituta moderna. Ou melhor, rica. Amor tinha forma, medidas e, obviamente, preço (e ela, o seu). Sempre fora dona de suas vontades, exceto do seu corpo, posse de toda aquela metrópole. Mesmo quando a pele era mais rija e as carnes menos fartas, não se entregara a sentimentalismos convencionais ou sequer inclinara-se em conceitos pré fabricados. Pré moldados. Pré feitos. Prefeitos. Casas pré fabricadas. Concreto. Mutirão. Credo! Não gostava nem seus pés, imagina dos “prés”. Soava estranho. Démodé. Bem retrógrado e suburbano. E não lhe apetecia nada que a remetesse ao passado inglório da infância. Pobre. Precoce.

Cresceu puta, como a mãe, mas pela perspicácia adquirida do pai (estelionatário renomado), fugiu logo da rua. Tornou-se cara, meu caro. Somente as mais fartas contas bancárias lhe conheciam. Exclusiva de seus bens, deitou-se com o apartamento da Vila Nova Conceição, fez orgias com os vôos de primeira classe na Air France, gozou com o conversível de cifras milionárias e, com cada Gucci, Armani, Valentino, Gabbana e Lacroix das boutiques, praticou felação. Fez fama e fortuna. Jovem, dissimulada e sempre, chegaram-lhe, mesmo com os trinta e poucos, os calores e as decepções. Começou então a reposição hormonal e assim pôde manter a vagina úmida, pérvia, com o mesmo odor e furor lascivo teatral. Se havia algum prazer neste verossímil fingimento, sequer ela ousava dizer. Sua trajetória tão alheia a si chegou ao ponto de lhe roubar o ser e, agora, era apenas a outra.

Sem nome e com muito Chanel número cinco, sorvia a taça de Veuve Clicquot e lembrava da última visita a Paris enquanto alí embaixo lhe lambuzavam o sexo com saliva e nervosismo. Um arroubo de entusiasmo a assaltou da viagem. É que a língua penetrara mais profundo. Soou um ai. Então se contorceu e retesou as pernas. Ele ejaculou com a possibilidade dum orgasmo roubado. Era um cliente fácil. Dizia-se apaixonado, que tal? Ainda extasiado, disse-lhe algo que agora não se lembra bem do que se tratava, só recorda que achou pilhérico, e riu. E desmoronou.

Levantou ainda há pouco com ressaca, lavou o rosto, tomou o comprimido da juventude, esqueceu-se do mundo e voltou a viver.

sábado, setembro 25, 2010

amarelo

Outro dia estava quieto, parado, no meio da rua, sem intenções sombrias. Era ainda de tarde, sol forte (a luz aqui é doída, sabe). É chato esperar semáforos se abrirem. Hoje mais ainda que acordei ofendido. Pronto, verde. Pisei lento o asfalto fumegante e com o olhar vago, absorto, segui nobre, quando zás! passou uma menina em disparada, quase se esbarra em mim... Colérico, parei. E, imóvel, fixei o olhar na fitinha do seu cabelo que dançava com o aquele movimento. Era amarela! A fitinha era amarela! Dei uma risada. Nossa! Lembrei no instante de Ariela. “Quem nunca ouviu falar da Ariela? A menina da fitinha amarela. Sapeca, que corria no meio da fazenda, dava nó no rabo do porquinho, soltava papagaio...” Mamãe lia isto pra mim. Não lembro bem todos os detalhes da estória. Só sei que aquela fitinha amarela me assaltou tão impetuosamente, trazendo uma simplicidade tal de sentimento que, igualmente, tornei-me amarelo. Fiquei da cor da minha infância, da cor de minha mãe e do meu pequinês – o Ringo. E, puxado num novelo de lembranças, vem a figura de vovô. Ele e todas as suas tardes e tolices; sempre levava um picolé pro meu cachorrinho, fazia cafuné no bicho, só pra se lembrar de mim (que já morava noutra cidade). Ora, eu saio de casa e logo em seguida sou um cachorro! Gozado, sempre apago isto de mim.

Perdi a meninice cedo. Foi um parto a fórcipe, “a ferro”, como bem se diz por aí. Talvez por isso eu me esqueça de ser humano. De voltar em mim e ali desfrutar a mesma doçura de outrora. De estar quieto e feliz.

Mas nada me toma de efeito, nada. Tudo sempre recai com o peso insuportável da impossibilidade. Tudo lateja e arde como ferida aberta. Eu, que apenas quis dar um passeio pela cidade, agora estou aqui, pálido, ou melhor, amarelo, e sem saber o que fazer. Há tempos decidi ser só e não posso, e nem quero, que tomem de mim o tocar-dos-pés-no-chão. É fato. A experiência já deu provas: tudo que é sublime tem seu preço, e é caro. Tudo que é simples e leve voa. E não tenho asas. É esta agora a angústia deste poste no meio da rua que sou eu. E, apesar do emaranhado de fios, da eletricidade e das conversas, tudo apenas passa por mim. Apenas passa. Apenas deveria passar, mas aquela fitinha...

Abre o sinal, tocam a buzina. Atordoado, recuo. Viro. Sigo. E sumo.

quarta-feira, setembro 22, 2010

inexistir

Não acabe com minha poesia, não corra com o vermelho pulsante de minhas artérias já dilaceradas por teu amor pujante e assassino, não fuja de mim...
Se ando calado, é que sou vazio. Tombaram meu corpo no caminho e agora me batem a cara como um cadáver de olhos vis. Se me rompe o peito a angústia, é que não sou nada além de nós. Estou cansado. Cansado mesmo. Cansado de escrever, de pensar, de tentar trazer à tona o que me traz de incerto a existência. Não espero que eu volte a mim tão cedo. Não. É que, vagante espírito, sei que posso ser nunca e nada, apenas hiato, apenas distância e memória (ou esquecimento, se assim quiser). Sei que assim posso ser traços, palavras soltas, sussurros e onomatopéias. Assim posso alcançar o sublime inexistir. Assim posso ser só. E só. E pó.
Chega o vento.
- Ffffuuuuuuu!
E agora nada.

domingo, agosto 29, 2010

zzzzzzzz

-Doutor, eu tenho um tumor no seio? É muito grave?

-Minha senhora, é um câncer de mama (pausa) estágio dois bê.

-Ai meu Deus! O que quer dizer isso, doutor? Que eu vou morrer mais rápido? Fale logo!

Olhar fixo. Silêncio.

Não minha senhora, quem queria mesmo morrer agora era eu. Morrer é inerente a quem é vivo, ora! não sei porque o pavor de algo que nos mantém (ou pelo menos deveria) no prumo da vida. Para quem perde o respeito pela morte, como eu, ela não vem... Eu que sempre escrevi nas crônicas póstumas minhas declarações docemente pensadas, falando de uma vida cheia de amores incompreendidos que me levaram ao extermínio deste ser vagante de alma tísica, notívaga, trôpega e delirante; eu que sempre me atirei de prédios como um pássaro de asas arrancadas e cultivei o cinza dos olhos; que criei a dor, dei-lhe forma e fama; que abracei a noite fria como uma amante moribunda que arde a última chama por um beijo vagabundo, tal qual fora sua existência, suja; eu que tantas vezes maculei as mãos com o rútilo sangue cujo fluxo interrompi quando com a lâmina fria separei carnes para juntar vidas, agora rogo para que com feroz ímpeto me rompa em mil traços e sem linha reta a vida cheia de reentrâncias e subversões. E me faça em nada, apenas fugaz recordação.

-E então, doutor!?

-Não se a senhora quiser. Basta aceitar o tratamento...

- Mas, doutor, e se...

Se, se, se, se.

Zzzzzzzzzzzzzz. É ela.

quarta-feira, abril 07, 2010

eu, menino

No tempo de mim bem menino, na pacata cidade de meus antigos, deram-me uma missão: eu tinha de ser feliz! Claro que para quem corre pelas ruas, sítios e currais, esconde-se debaixo da ponte do rio, empina papagaio por tardes a fio e se afugenta das ralhadas e safanões da mamãe entre as barras do vestido da velhinha que mora ao lado, não haveria de ser tão difícil cumpri-la. O tempo é apenas um coadjuvante no processo do crescer, sabe-se que ele está ali sempre, aliás o corpo diz todos os dias isto, mas ninguém lhe dá seu real poder, afinal, será que na infância ele tem algum?

Não sei exatamente quando me tornei adulto, não passei por um processo gradativo, experimentando irresponsabilidades e prazeres inerentes a adolescência, não! passei direto. De menino, já fui homem. É esquisito não poder correr qual dantes, mas não me conformo fácil, sempre fui audaz, quando olho o céu noturno cheio de estrelas, fujo da rispidez dos percalços diários e me deleito infinitamente por acordar no quintal de minha casa: ali, deitado no chão mesmo, imaginando quão grande podia ser o universo... Hoje por mais do conhecimento adquirido, tudo me parece ser menor e, ainda que me esforce, nem todos os dias recordo daquela felicidade a qual estaria eu fadado a ter.

Hoje quem brinca com o tempo é aquela mesma velhinha de outrora. É certo que ela não pôde abster-se das marcas físicas de quase um século, mas foi o preço que aceitou pagar por ter a mente livre. Tão livre, que dada a ousadias, viajava milhares de quilômetros apenas com o desejo do instante, visitava amigos e parentes com a mesma rapidez que durava o seu sorriso, puro, ingênuo, afinal, ela, que também teve a infância tolhida pela precoce perda da mãe, guardara todo o seu estoque de gracejos por uma vida inteira, agora, nada mais justo que usufruí-los ininterruptamente.

Ela, que não toca o chão e voa com a facilidade de um curió, as vezes cansa de fugir de sua sina e pousa perto de nós e, ainda assim, nunca perde a ternura de cada gesto e de cada olhar incompreendido. Agora, longe do calor dos seus abraços que os anos tornaram débeis, mas sempre dispostos e afáveis, tenho medo do mundo, medo de esquecer sua voz frágil e embargada dizendo que me ama mais do que a minha compreensão, mais do que eu próprio, e me outorgando a sentença: “- Que Deus te faça feliz!”

Saudades, vovozinha.