Tenho tanta saudade de mim...

sábado, janeiro 29, 2011

inverno

Chega de despedidas
chega de tanta
saudade.

                                 Hoje o dia até que prometia sol.
                                 Veio a chuva.

Perdi o tato
pra certas coisas
uma delas este sentimentalismo a flor da pele
quase barato
coisa de quem se sente superior
olhar vago
mente elevada
coração bradicárdico.

                                 Hoje até que prometia sol
                                 eu é que estava já
                                 nublado.

E veio a chuva.
- Ore, é falta de Deus! Dizia minha mãe.
- É falta de mim, mãe.
- É saudade de mim.

                                Hoje o dia até que prometeu sol.
                                Eu que não vi...
                                Ainda sou chuva.

domingo, janeiro 23, 2011

grand finale

Blém-blém-blémbléim-blém. A igreja... Sete horas.

A cidade amanheceu vazia, cheia de ressaca. O sol da manhã ardia o asfalto coberto de tiras de papéis, latas e secreções...


Dia anterior


- Acode meu povo, repara que é briga!
- O quê? Quem foi?
- O Chico caiu de paulada no Manel ali no meio da praça, minha gente, corre pra apartar!
- Valei-me, vambora ligeiro que rebuliço com Chico é morte certa!


Minutos mais cedo


A praça lotada. Não via tanto furdunço assim fazia tempos. Era gente, suor, calor, cerveja quente e uma música qualquer que naquelas alturas ninguém sequer tinha noção do que se tratava, apenas passavam, pulavam, sujavam-se e faziam amizades sinceras de infância, tudo na espera da grande banda da noite – o “grand finale”.

Era carnaval, minha gente...

Desde cedo o frisson era geral. Vinha gente de toda parte: das cidades vizinhas, da capital, doutros Estados, vinha inclusive eu. Não pro carnaval, certamente; vinha porque coincidentemente tinha férias naquela ocasião e me furtava de saudade o peito. Saudade dos meus. Mas não podia deixar de compartilhar sensações e experiências no meio de todo aquele movimento. Estava sentado no banco do ônibus que vinha do aeroporto mais próximo para aquela cidadezinha e, atento, observei o diálogo.

- Eita, seu moço, ta viajando pra onde?
- Eu tô indo dar um pulo ali pra passar o carnaval.
- Mas o senhor ta indo mesmo só pra brincar o carnaval.
- Não rapaz, que é isso?! Eu não brinco carnaval! Carnaval pra mim é coisa séria!

De fato, era coisa séria por ali mesmo. Interditaram as ruas, pintaram as calçadas, encerraram cedo as lojas, até a Igreja fechou. Anunciaram que a missa do domingo fora excepcionalmente adiada. É que fica muita zoada na rua. Justificavam os fiéis já com a lata de cerveja na mão e com a cara toda suja de maisena. Sim, isso mesmo, toda suja. Carnaval ali era desse jeito: todo mundo se melava, mudava de sexo, mijava de madrugada na porta da casa dos parentes chatos e se dormia por onde dava mesmo. Noutro dia ninguém se lembrava de nada e seguiam adiante.

Foi no meio disto tudo que a banda tão esperada começou. Eram os fantásticos de não sei onde e cantavam uma coisa qualquer. O som era tão alto, tão absurdamente alto que tenho certeza que nenhuma viv’alma dava conta de entender o que era aquilo que gritavam. Mas quanto mais alto melhor, é festa afinal. Todos deveriam ficar embriagados, seja de álcool ou de labirintite mesmo. E no meio da celeuma, do empurra empurra, zás, o som ficou mudo. A sensação é a que de repente se fica oco, como se a música fosse um pesado e grosso fardo. E de fato era, só que naquelas condições ninguém chegava a qualquer refinamento filosófico.

- Calma, minha gente, é que o fio da guitarra torou*!

Foi meu juízo que “torou” naquela hora. Era demais. Peguei meu corpo e levei embora. No caminho de casa escutei um zum-zum-zum duma briga que foi parar no hospital, no necrotério e na delegacia. Mas tudo bem – diziam. Era carnaval.

Peguei no sono ligeiro, acordei sem ressaca e fui andar pela cidade na quarta-feira de cinzas...





*torar = forma não gramaticalmente correta do verbo romper, partir...

sexta-feira, janeiro 07, 2011

missiva póstuma

Gostaria ter sido apenas ficção. Apenas aqui e nunca mais.
Querido vovô,

Ontem viajando rumo a sua casa, lembrei o igual caminho inverso que fizemos juntos há vinte anos quando memoravelmente celebramos os seus setenta anos. E como filme, veio à mente todos os instantes que nós dividimos, desde a minha infância, contanto estrelas sentados à porta e ouvindo histórias mirabolantes dos tempos de outrora, passando pelo crucial instante que parti desta cidade – nossa primeira cisão – que, inocentemente, sequer imaginava que a partir daquele momento nossos encontros seriam apenas em minhas férias, afinal a vida acadêmica havia apenas começado.

Os anos passaram, vovô, e nunca perdi o encantamento da sua presença e de suas estórias, mesmo que por vezes repetidas, sempre soavam como ensinamento, como lição de vida, algo a ser seguido. Talvez, pela agitação da vida, do trabalho e de tudo que nos acerca, tenha perdido os olhos de criança que deixei com o senhor, aqui nesta cidade, guardado carinhosamente, sempre na esperança de me entregá-los novamente quando voltasse em definitivo. Falhei com o senhor. É que sua figura sempre fora a de um super herói! Super heróis são infalíveis, são imortais... Era só ilusão de menino.

Com o meu trabalho, aprendi cedo a lidar com a morte de outrem e encara-la com paciência e respeito, sempre cauto e seguro. Mas quando chegou a notícia, não pude evitar, a perplexidade habitou meu olhar. Doeu. Doeu pra valer. Não sei explicar o quanto. Não há palavras. Senti revolta, sabe vô. Por que o senhor não me esperou? Por que não me deixou ao menos tentar? Faço tanto pra muitos e logo com o senhor sequer puder lutar! Fiquei muito frustrado.

Então vieram as mensagens, os telefonemas. É assim, meu filho, temos que aceitar! Mas, vovô, eu estou aqui para lhe dizer veementemente que não aceito coisa alguma! Aceitar passivamente as coisas é concordar com as atrocidades do mundo, com a iniqüidade das pessoas, é compactuar com o malfazejo, com os contratempos e as intempéries e isto o senhor não me ensinou a ser! Sempre me disse que um homem de caráter e vergonha deve lutar pelos ideais e, de maneira alguma, deve aceitar que lhe tomem as rédeas da vida. O senhor foi um exemplo de tal conduta. Mesmo com a vida cheia de perdas precoces – seu pai, os irmãos, sobrinhos e o filho querido – nunca lhe foi empecilho ter fé, seguir adiante, lutar e vencer. Pelo contrário, o senhor mesmo sempre mantinha viva a lembrança de todos que partiram e assim nunca deixava que a morte lhe tomasse proveito ou zombasse de sua família. Isto jamais! Esta é uma lição, vô, que só aprendi agora, mesmo sem poder ouvi-la de sua boca. Morrer é apenas mudar o canal de comunicação. É deixar o ser humano físico e assumir a existência metafísica em que não há limites de corpo, de tempo ou espaço; é ser livre sem limites e habitar o coração de todos aqueles que guardarem em si uma lembrança carinhosa da fraterna convivência familiar, por mais fugaz que ela possa ser; é ser de fato imortal.

Então, vovô, deixe que levem este corpo atérmico, pálido e inerte. Ele é só testemunha da morte fisiológica. Este não é mais o senhor! É apenas composição orgânica que, por ser fruto da terra, retorna à terra em seu leito nefasto e morredouro que corrói os corpos e os corações dos homens de pouca fé e isto não somos nós. Somos fortes. Sei que paradoxalmente agora diz que está feliz por ver a família reunida. Estou aqui para selar este pacto com eles e com o senhor, viu. Não se preocupe, está tudo organizado! Pode seguir adiante, sem medo, porque aqui dentro, bem profundamente, o senhor continua mais vivo do que nunca.

Do neto que lhe adora.