Tenho tanta saudade de mim...

sexta-feira, janeiro 07, 2011

missiva póstuma

Gostaria ter sido apenas ficção. Apenas aqui e nunca mais.
Querido vovô,

Ontem viajando rumo a sua casa, lembrei o igual caminho inverso que fizemos juntos há vinte anos quando memoravelmente celebramos os seus setenta anos. E como filme, veio à mente todos os instantes que nós dividimos, desde a minha infância, contanto estrelas sentados à porta e ouvindo histórias mirabolantes dos tempos de outrora, passando pelo crucial instante que parti desta cidade – nossa primeira cisão – que, inocentemente, sequer imaginava que a partir daquele momento nossos encontros seriam apenas em minhas férias, afinal a vida acadêmica havia apenas começado.

Os anos passaram, vovô, e nunca perdi o encantamento da sua presença e de suas estórias, mesmo que por vezes repetidas, sempre soavam como ensinamento, como lição de vida, algo a ser seguido. Talvez, pela agitação da vida, do trabalho e de tudo que nos acerca, tenha perdido os olhos de criança que deixei com o senhor, aqui nesta cidade, guardado carinhosamente, sempre na esperança de me entregá-los novamente quando voltasse em definitivo. Falhei com o senhor. É que sua figura sempre fora a de um super herói! Super heróis são infalíveis, são imortais... Era só ilusão de menino.

Com o meu trabalho, aprendi cedo a lidar com a morte de outrem e encara-la com paciência e respeito, sempre cauto e seguro. Mas quando chegou a notícia, não pude evitar, a perplexidade habitou meu olhar. Doeu. Doeu pra valer. Não sei explicar o quanto. Não há palavras. Senti revolta, sabe vô. Por que o senhor não me esperou? Por que não me deixou ao menos tentar? Faço tanto pra muitos e logo com o senhor sequer puder lutar! Fiquei muito frustrado.

Então vieram as mensagens, os telefonemas. É assim, meu filho, temos que aceitar! Mas, vovô, eu estou aqui para lhe dizer veementemente que não aceito coisa alguma! Aceitar passivamente as coisas é concordar com as atrocidades do mundo, com a iniqüidade das pessoas, é compactuar com o malfazejo, com os contratempos e as intempéries e isto o senhor não me ensinou a ser! Sempre me disse que um homem de caráter e vergonha deve lutar pelos ideais e, de maneira alguma, deve aceitar que lhe tomem as rédeas da vida. O senhor foi um exemplo de tal conduta. Mesmo com a vida cheia de perdas precoces – seu pai, os irmãos, sobrinhos e o filho querido – nunca lhe foi empecilho ter fé, seguir adiante, lutar e vencer. Pelo contrário, o senhor mesmo sempre mantinha viva a lembrança de todos que partiram e assim nunca deixava que a morte lhe tomasse proveito ou zombasse de sua família. Isto jamais! Esta é uma lição, vô, que só aprendi agora, mesmo sem poder ouvi-la de sua boca. Morrer é apenas mudar o canal de comunicação. É deixar o ser humano físico e assumir a existência metafísica em que não há limites de corpo, de tempo ou espaço; é ser livre sem limites e habitar o coração de todos aqueles que guardarem em si uma lembrança carinhosa da fraterna convivência familiar, por mais fugaz que ela possa ser; é ser de fato imortal.

Então, vovô, deixe que levem este corpo atérmico, pálido e inerte. Ele é só testemunha da morte fisiológica. Este não é mais o senhor! É apenas composição orgânica que, por ser fruto da terra, retorna à terra em seu leito nefasto e morredouro que corrói os corpos e os corações dos homens de pouca fé e isto não somos nós. Somos fortes. Sei que paradoxalmente agora diz que está feliz por ver a família reunida. Estou aqui para selar este pacto com eles e com o senhor, viu. Não se preocupe, está tudo organizado! Pode seguir adiante, sem medo, porque aqui dentro, bem profundamente, o senhor continua mais vivo do que nunca.

Do neto que lhe adora.

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