Tenho tanta saudade de mim...

quarta-feira, abril 01, 2015

progresso do sertão

Vrão!
Sobe serra, desce caminhão
leva nada de nada
sacode poeira, carrega carvão.

Vê terra ali no fundo
de vista a se perder?
É ali o quase-fim-de-mundo
donde o cão fez Judas correr
é ali naquele esquecimento
de tempo, eras, passados
cangalhas, lombo de jumento
coivaras fogo ardendo, fornalhas
aboios de velhos vaqueiros
mulheres rezando rendeiras
menino de bucho crescendo
o gado no pátio deitando
cachorro no pé da soleira latindo
que o progresso vem e rompe ligeiro!

O sertão do rádio de pilha
da cartinha a dona Maria, seu João!
Lá chegou também energia
e é parabólica brotando do chão...
Corre ligeiro menino,
sobe no toco acolá
é lá que o sinal dá é certo
desta rede de celular.

Vrão!
Sobe serra, desce caminhão
leva nada de nada
sacode poeira, carrega carvão.

É o progresso minha gente
ele não se pode parar
traz trator, traz corrente
traz com esteira, vambora derrubar
na enxada que nada, meu povo!
motosserra ganhou o lugar
só perdeu o mato, a floresta
as clareiras vão se abrir e é já!
fornalhas queimando com o diabo
fumegando na boca do inferno, fornalhas
paisagem cinza apagada
se progresso daqui é o carvão,
o progresso do sertão é, pois, nada.

Vrão!
Sobe ladeira, desce caminhão
leva nada de nada
sacode poeira, carrega carvão.

O futuro quem será é que guarda?
Já que o passado repousa sob cãs
do velho sacolejando às passadas
sobre burra esquipadeira, marchante...
Nestes olhos cansados de tempo
tantos sóis, estiagens, sofrimento
da fartura limitada dos sertões
do além-vir incerto dessa gente
eita sina sem pena
não me deixa olvidar disto aqui
sei que sofro com o dilema:
devo ficar ou partir?
Partindo ao etéreo, minha terra,
por fim me abrace e me vista de ti.


quinta-feira, março 19, 2015

amar

Amar é urgente
já foi ontem!
amar é falta de sono
taquicardia pele fria angústia
excesso de lágrima?
amar é unilateral
resquício de página
dum livro de poesia
em que a verdade se descortina
nas palavras impensadamente sentidas
pelo poeta louco maior
que ama
e ama
e ama
e desama
e sofre.

terça-feira, fevereiro 17, 2015

fim do carnaval de 2015

foi aquela nossa despedida:
da janela, num ponto mais alto, parado,
nossos olhares a meio metro
os corações a meio infarto
o motor do ônibus em ponto morto
e os minutos, fiéis ao tempo parco
impiedoso, medíocre e farto
(nenhum segundo a mais),
ronca o acelerador!
ruma ao Charles de Gaulle
e eis por fim que parto

levo-as no rosto
lavando o que disfarço
fora: fortaleza segurança
dentro: loucura paixão saudade
dos dias de amor gastos

cinza foi a cor escolhida
do dia de minha partida,
foi-se mais uma vez Paris
mas sempre a teremos sim
os risos excessivos aussi
e nossas piadas internas:
- comment tu t'appelles?
-je ne "plus blis!"*


*http://youtu.be/78pi_4Op64A

quarta-feira, fevereiro 04, 2015

epifania

dizer tudo
e ainda sim não ter
sentido definido
então vivo, logo existe poesia

mistura química de palavras
com sensações minhas
e libertas:
ser tudo ou nada

sou poeta aqui
já que na vida
a rima de meus dias
é escassa
longe de ti

ser poeta e fugir
mundo afora e através
gritando vida!
ecoando teu nome ao revés

incorpórea epifania
alcançai a alma minha,
despida,
devassada por ti,
minha poesia

segunda-feira, fevereiro 02, 2015

O circo

Sob a lona rasgada
com o brilho do estrelado céu
baila garboso o palhaço
dá cambalhotas, faz escarcéu
gaiato, não tem escrúpulos
nem foi treinado em qualquer curso
é nata sua pilhéria
e é sim o ladrão de mulher!

E chega ele pomposo
il grande circo, senhores!
anuncia no microfone orgulhoso
(com sotaque paraibano)
que o circo genuinamente italiano
chegara naquelas paragens:
engolidor de espadas, palhaços,
malabaristas, o fantástico mágico,
e nossa maior atração!
(grita com mais entusiasmo)
direto da África!
Ele!
O grande leão!

Os moleques corriam aos tropeços
esbaforidos, atrás do carro de som
- tio, dá pra nóis um ingresso!
e as havaianas iam se perdendo pelo chão...

O velho de dentro do carro
(que não era nem bobo, nem nada)
propôs a meia boca à meninada:
- se vocês me trouxer uns gato,
pra matar a fome do leão
eu deixo ver o espetáculo
mas quem espalhar na cidade
essa minha proposta
num entra de jeito nenhum
e inda fica com cara-de-bosta!

Pronto! O desafio fora lançado:
Zé Ricardo, aquele danado, levou logo dois
pra garantir o serviço empenhado.
Leonardo, Alberto e Mundico
riam da cara do Chico
que ainda não capturara seu gato.

Corria em silêncio o campeonato
naquela cidadela de interior,
nem desconfiou seu Nonato
quando passou na sua rua com um saco
o Manel escondendo um gato,
com miado desesperado e abafado,
que era dentro seu bichano, o Tambor.

Ao final do dia, foram cobrar a tarefa
dada pelo dono do circo
mas ficou de fora Joaquim
que apesar do esforço empregado
em roubar o gato da sua tia velha
não dera conta do recado
e ainda pagou o maior mico.

Os outros bem que podiam
ter ficado calados
mas começou logo o Zé
a chamar o outro: - é abestado!

Joaquim franzino e covarde,
diante da maioria,
pôs entre as pernas o rabo
e correu pra casa da tia.

O leão decerto se saciou
com seu banquete felino
só se via no espetáculo
a arquibancada cheia de menino.

O Joaquim injuriado
não deixou nada por menos
e antes de acabar a sessão
deu com a língua nos dentes
e mesmo não tendo visto o leão
foi pra cama com riso contente
já que diferente dos outros
não dormira com o couro quente.