Tenho tanta saudade de mim...

segunda-feira, janeiro 01, 2018

Presente dos 10 anos

A infância dum menino deve ser:
bola pião pipa e peteca
mas lá na minha infância
peteca era o que, já grande, me diziam ser bola de gude
é nada, bola de gude nem existe
a peteca, sim
sem pena, rompia o vidro fundido doutras petecas
sem pena, minha peteca ganhava quintais
todas as tardes naquela cidade de petecas sem penas
os quintais dos meus vizinhos
e doutros que nem conheço
eram os campos de meus emperdecimentos
naqueles lamacentos terreiros das quartas-feiras
depois da bola às 4 da tarde no campinho dos padres
a noite rasgava o tecido do céu
até sangrar o horizonte
o sangue do universo era laranja
e o tintilar das petecas irritava Maria
que nos mandava parar de gritar.

Nos quase 10 anos daquela infância que era minha
vovô, mais menino que eu, me chamou:
- Vem aqui, rapazinho, rapidinho.
Pôs uma ripa de buriti e me mediu:
- Pronto, pode ir.
Esqueci das medições de meu avô.
Ele era dado a organizar coisas, mesmo.
A controlar o tempo,
a governar tudo.
A propósito, nos seus quintais não se brincava muito
ali era das meninas: minhas irmãs, umas primas,
das suas panelinhas, bonecas e preparações da vida adulta.

No final da rua cortava um rio fino, raso, bem raquítico
nem perigoso, nem nada
mas pra quê ter rio, mesmo?
- Sem adulto, lá é proibido!
A maior exploração indiana jhonica de minha vida
foi ousar tomar banho debaixo da ponte numa tarde
eu e minha meninice sozinhos.
Os sinos da igreja dobrando seis horinhas gritavam
Belémbembem, vai pra casa! Belémbembem, vai pra casa!
E agora, criminosa criança?
Teus olhos em chama são tua denúncia
colírio o quê, só um mantra:
- Cu de pinto, cu de pato.
Sopra na mão em cunha e vai cobrindo o olho de cada lado.

Aí, nos meses de julho, nas férias,
vinha gente de todo lado: primos, amigos, parentes
dumas cidades de petecas diferentes
e eu não muito gostava.
Mas naquele julho de mil novecentos e noventa e poucos
que os preços dos bombons mudavam todos os dias
era também o mês que eu perdia
uma porcentagem de menino:
tinha ganhado enfim dois algarismos!
As pessoas arrastam dois algarismos por toda uma vida
e geralmente vão pra debaixo da terra com eles
isso quando se morre de morte morrida...
só um velho ali da esquina que já tinha pra mais de cem
ainda teimava em ser gente.

Pra festejar a sina que me deram: a de ser humano
meu vô desvendou finalmente o mistério
a pipa que ele me fez de presente
era exatamente do meu tamanho!
Não é tempo de pipa ainda, tem o da peteca, do pião, só depois...
Guardei o papagaio num canto
e esperei que o tempo ventasse forte, em nós.
Mas chegou bem ligeiro como sempre chegava
o vento e tanto menino pescando o céu
toda tarde era uma beleza:
uma algazarra que nem sei se existe mais.

A pipa de um metro e pouco finalmente saiu aquele dia pro seu voo inaugural
o papagaio tanto rangia
com uma força de vento tal
que meu pai me tomou o barbante
e foi ele o comandante da nossa ida ao céu.
Vovô era arteiro de verdade!
Não fizera a pipa só pra mim
quisera ele que o meu pai, seu filho,
fosse de novo menino
logo comigo, assim.

2 comentários:

Unknown disse...

Belo poema. Que a inspiração continue abundante ao seu poder criativo. Parabéns!

Unknown disse...

Parabéns, poeta. Apreciei muitíssimo o seu texto. Uma poesia proseada, carregada de lirismo. Tentei parar antes do fim, não consegui. O sequencial de imagens e cenas vão compondo um enredo que impulsiona o leitor (eu) a buscar o último verso. Foi o que fiz, com prazer e deleitamento. Salve!