Tenho tanta saudade de mim...

domingo, abril 09, 2006

um velho, uma bengala

Ele foi indo rua abaixo com sua bengala do lado e passo ébrico. Todos os dias o velho fazia o mesmo caminho e os mesmos olhares que o acompanhavam diziam “agora ele cai”. Para infelicidade de todos, nunca aconteceu. Na sua limitação, ele continuava, como quem se caminha sem destino e sem pressa de chegar a lugar qualquer, andava pela necessidade de se sentir vivo, mesmo que todo o peso do tempo o transfigurava num moribundo. E nesta luta constante contra as adversidades que eram pautados os dias daquele senhor de olhar manso, expressivo e de cabelo de algodão cru.

Não sei bem porque aquela figura me trazia tanta impaciência. A calmaria de seus gestos trazia a agonia ao peito. Queria trocar algumas palavras com ele, quem sabe um “oi, como vai”, mas será que isto se pergunta pra quem não sabe nem o que lhe espera ao dobrar a esquina? Sim, porque naquele avançar da idade, nada me espantaria se me dissessem que o velho da bengala tinha dobrado a esquina, tropeçado numa pedra e morrido de traumatismo craniano. Não sabia realmente o que dizer a ele, nem o que perguntar. O silencio que geralmente ajudava a aliviar as tensões da mente não funcionava com aquele velho. Acho que nem mesmo o pobre coitado sabia o mal que me fazia. Devia era morrer logo d’uma vez e me deixar quieto! Não queria mais ser obrigado a olhar o velho a passar pelas coisas e as coisas a passarem pelo velho, numa passividade recíproca e cansada.

Logo chegou o tempo de partir de minha cidade e buscar a vida noutras paragens. O dinamismo da capital me fez esquecer o velho e às vezes até de mim mesmo. O ritmo taquicárdico da rotina metropolitana era bem eu. Gostava daquilo, do desconhecido, uma sensação bem maluca de ser só no meio de milhares de pessoas juntas. Mas como tudo acontece comigo, isto cansava por vezes e lá eu voltava à cidadela calma e pacata que me gerou. Numa dessas visitas lembrei o velho e percebi que ele não descia mais aquela rua no fim de tarde como dantes. Senti um vazio, talvez saudades daqueles passos calejados e daquele olhar manso. Ninguém soube me dizer o que havia acontecido com ele, nem mesmo o seu nome sabiam para que eu pudesse talvez encontrar alguma lápide no cemitério e quem sabe acender uma vela. Nem mesmo se sabia se ele havia mesmo morrido. Ele simplesmente sumiu, tornou-se invisível, desintegrou-se no espaço.

Procurei saber onde ele morava. Não foi muito difícil. Uma velha casa perto do rio cercada de ripas aparadas com uma cancela de madeira na frente que abria o caminho por um jardim de hortências, rosas e cravos entremeados por capim e ervas daninhas. O som do rio batendo nas pedras se unia aos dos xexéus que faziam seus ninhos numa gameleira bem perto dali e embalavam a melodia daquele cenário melancólico. Segui um pouco mais e estava em frente da porta de madeira débil que pouca resistência fez quando forcei minha entrada. Os raios de sol atravessavam algumas telhas quebradas no teto e a penumbra envolvia a atmosfera da sala. No canto, uma cadeira preguiçosa e no mocho que estava adiante, um jornal de três anos atrás. O velho lia. Uma sensação de medo e calma juntos ao mesmo tempo me invadiu, mas fui além. Devagar, entrei por um pequeno corredor que ao fim levava a um pequeno quarto. Uma cortina de xita rasgada isolava aquele compartimento do resto da tapera e o deixava mais escuro que o restante dos cômodos. Os raios de sol que insistiam em iluminar o ambiente pelas frestas duma janela que ficava na parede do fundo daquele quadrado me convidavam para que eu os ajudassem a transpassar aquela barreira, então eu a abri.

Meus olhos contemplaram uma simplicidade tão ímpar. Fiquei parado um certo tempo até entender tudo aquilo. Na cama de palha coberta por um lençol que antes deveria ter sido branco, adormecia a velha bengala e na cômoda ao lado, uma lamparina velava papéis dispersos dispostos embaixo de uma caneta de tinta já seca. Peguei todos eles e os trouxe comigo. Saí do quarto e me achei na cozinha com um fogão de lenha com algumas cinzas que ainda descansavam no seu interior. A portinha dos fundos rangia com o vento que a insultava, passei por ela, saí e busquei o quintal. Dei algumas voltas, comi algumas cajás que haviam caído há pouco. E lá no fundo, debaixo duma laranjeira de sombra singela descansava uma cruz fincada no chão. Ele dormia ali. Na paz e na serenidade de seus dias quando em vida. Nem fiquei triste nem nada. A tranqüilidade de sua morte trouxe a paz à minha vida.

Em passos curtos e calmos agora eu subia a rua. Busquei minha casa, meu quarto e dormi. Fiquei em silencio por alguns dias, falava somente o necessário, não desperdiçava minhas forças com o supérfluo. Lembrei então os papéis que havia roubado do velhinho e lendo aquelas letras tremidas e incoordenadas vivi um século inteiro em poucos minutos. No fim de seus versos ele dizia bem assim “e fui feliz...”. Fechei os olhos e chorei.

2 comentários:

Anônimo disse...

meu confidente, minha vida. vou dormir. amanhã lerei seu texto com toda calma.

beijoss!

Anônimo disse...

meu amor,

confesso que de início achei que seu texto era puro humor negro, qdo dizia sobre a infelicidade do velhinho nao tropeçar e nao morrer.

engano meu.

seu texto, mais uma vez, pura poesia. eu cresço com vc, vivo vc. choro com vc. queria por um instante sentir o que o velhinho sentia. hj nao podemos compreender que no final nada é tão importante assim como achávamos. a vida passa, o vento fica. sinta o vento. sinta vc.

grande beijo,

camila de josé.