Tenho tanta saudade de mim...

sexta-feira, abril 14, 2006

ainda

De repente escuridão... Havia alguns dias que não andava lá bem dos humores, meio inapetente, apático e com uma preguiça maior que o normal. Por vezes no fim da tarde meu corpo ficava quente, mas logo a cama me envolvia num abraço e cedo esquecia das febres. Aliás, adoecimento é matéria de esquecimento, de pura negligência. Quem bem se lembra do corpo, da alma pouco sucumbe. Isto é tão verdade que, de todos os velhos que conheço, aqueles mais lúcidos foram os que morreram mais tardiamente, mas sempre morreram, ainda não vi um permanecer, ficar ali, mesmo latente, quieto, esperando a passagem dos tempos, sendo referência do passado das coisas e testemunha das grandiosidades d’agora. Por isso sou negligente mesmo. Pouco importa se meu fim é cedo ou tarde, agora ou se foi anteontem. Tudo tem fim. E no fim do dia seguinte a ira colérica tomou toda a extensão de minha pele, fê-la em brasa, olhos em tocha, boca em chamas. O homem negro de olhos negros e capa negra fechou então minhas pálpebras e me levou consigo. Fui.

Alguns dias depois, ou seria meses, não sei ao certo. O fato é que não estava ali há pouco tempo. Sentia apenas que voava. Olhares ao meu redor, muitos, nunca vi tantos, e se forem de anjos, todos mentem de suas belezas. Lá encima, bem acima deles, uma claridade exageradamente ofuscante indicava o caminho pelo qual estava sendo levado. Se morrer é ter que cegar a retina com aquela luz, prefiro então a penumbra de meus mortais dias, ou então a morte de lugar algum, aquela de apenas me desfazer e me espalhar pelo mundo e não ter memória, nem perspectivas de continuidade. Apenas a de estar nos lugares, como o pó que sempre permanece mesmo depois que tudo é limpo e que ninguém vê a primeira vista, mas está ali.

Quando a dor fez parte dos segundos que lentamente passavam, descobri que não morrera. Vi meu corpo cheio de pequenos tubos que invadiam minhas veias pelos quais soluções tatuavam na minha pele o caminho de meus vasos, trazendo a agonia, o sofrimento. Descobri que existe mesmo inferno, ainda que dantes nunca quisera acreditar. E ele fica aqui! Seria castigo de meu esquecimento? Seria então uma opção estar ali? Um grito rompeu o silêncio que violentava meus ouvidos, o rosto em lágrimas, sozinho. Dói ser só. Nem sequer poderia sair correndo com minhas mãos presas à cama, meus braços já cheios de hematomas, sinais da rebeldia inconsciente das convulsões. Não sou muito de me entregar. Não havia outro caminho. Calei meus pensamentos, meus impulsos e por fim minha boca.

Alguns anos depois descobri que pessoas também viviam ali, não presas como eu. Já devia ter desconfiado mesmo, afinal aqueles tubos nunca esvaziavam. Alguém sorrateiramente violava o santuário de meu sono e os trocava. E nunca dormira como ali, acho que era uma espécie de magia, de encantamento que havia naquela cama, nas paredes brancas sem cantos e na janela que não ia a lugar algum. Certo dia cheguei a olhar uma dessas pessoas. Era noite ou dia, não sei, afinal nada mudava, tudo era igual o tempo todo. Então não deixei a magia me envolver, fechei os olhos e fingi dormir, mas estava bem vivo, a espreita, como um leopardo ágil. Quando ouvi o giro da maçaneta, abri uma fresta entre as pálpebras e vi. Não eram humanos! Por isso nunca tinha ouvido sons de passos, afinal voando ninguém ouve o atrito do chão contra os pés. Desde então resolvi não querer entender mais nada, nem mesmo o porque das paredes sem cantos.

E eu aqui fui ficando só para poder ver a verdade das coisas. E fui envelhecendo sem nunca eu perceber. Nem dei conta que já havia feito a minha escolha de apenas ser o pó que permanece. Descubro-me um mar que rebenta tanto para nada e a memória é a única testemunha que prende por um fio o que ainda sei dizer. Ainda...

2 comentários:

Anônimo disse...

Zé, q viageeeeeemmmmm, meu Deus!!!!!!!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

se não conhecesse vc tão bem...
(pequeno sorriso de canto de boca, vc entendeu!)

beijos.