Tenho tanta saudade de mim...

sexta-feira, setembro 08, 2006

holocausto

Eu tenho tanta pena de morrer, de deixar tanta coisa... Outro dia uma tal de espírita veio me dizer que era bobagem pensar assim, que lá do outro lado existem coisas melhores. Mas não pra comer. Eu aposto! Ninguém come lá. Onde já se viu dizer que alma come? Eu acho que é por isso que tem tanta alma penada pelo mundo afora, todas com fome, coitadas... Eu me lembro dos tempos de menina que mamãe fazia uns cozidos tão bons, papai trazia caças pra fazer paçoca e assados. Mas depois de velho ninguém mais se governa. Nem mesmo o que enfio goela abaixo eu determino. Um batalhão a me apontar um monte de armas a começar pelo meu médico da pressão. Ele não come nada insosso. E fica jogando piadinhas dizendo que eu sempre ando muito zangada. Se eu comesse, ah, até que seria mais alegre. Minha filha, a discípula do holocausto. Nunca vi tanta tortura. Todos comem diferente de mim, aliás eu sequer como, eu engulo apenas. Nada de paladar, nada de satisfação. Sexo sem prazer. Antes de minhas carnes caírem eu até teria um consolo, mas agora, velha, além de tudo viúva... Melhor nem pensar nestas coisas, é pecado. E dizem que minhas taxas aumentam, só minha paciência que não. E reclamam “faça exercícios”. Trabalhei a vida toda cuidando de menino atentado e lavando roupa de marido. Eu mereço descanso! Nem isso, nem isso... Fazer que eu caminhe feito idiota pela praça da cidade. Acho que fazem de mal, só pra eu ver o sorveteiro, o pipoqueiro e a mulher do churrasquinho... Eu já nem fico tão aborrecida, eu como escondida depois e pronto. Eles descobrem tudo, eu sei, mas aí ninguém vai me tirar a comida fora mesmo. E nem adianta ralhar, eu sou surda. Uma das vantagens da velhice: a surdez oportuna. Tratei de ficar surda logo, é bom, ajuda. Só não aceito que digam que sou broca. Sonsa, talvez. Sempre gostei da Capitu, seus olhos dissimulados. Os meus, iguais. E minhas netas nunca entenderam como ser. Por isso estão todas encalhadas. Na idade delas eu tinha até anel de compromisso e as minhas carnes eram fartas, não era mirrada. Elas não comem sarapatéu todo final de semana como eu fazia. Nenhum viço... E ainda chamam de moda. Dizem que os rapazes gostam assim. Mentira, homem não pensa além do que está entre as pernas. Até isso eu já compreendia e estas tontas ficam se matando por uma coisa vã. Vai entender essas meninas. Melhor mesmo ficar quieta com meus comprimidos. Um dia aprendo. Um dia... Espero que não demorem para o almoço...

Um comentário:

Anônimo disse...

Que brilhantismo de humor! Texto divertidissimo, inspirado e com um tom crítico fino bem acertado! Parabéns!!