café com letras
segunda-feira, julho 14, 2025
Entre o beijo e o nunca
segunda-feira, agosto 29, 2022
domingo no parque
três vidas domingo à tarde rumo a Pinheiros
três histórias
três
sobem a rua em marcha lenta
respeitando os 40km por hora
três passados inexistentes
moldados pelos olhos d'agora
disputam o mesmo oxigênio
mas exalam entre si aromas
próprios únicos solitários
como o pensamento
(ou o tráfego lento)
não sei se ali poluem mais a atmosfera
da cinza essepê
ou se dissipam pelo ar medos
inauditos
e que apenas se atrevem
nos suspiros
fito lá fora
há três outros garotos descendo a rua
agora
passos desinteressados
tons monocromáticos
risos flácidos...
que somos muitos trios
permeados de sumiços
seguindo diversos traços
num domingo
vamos tomar um cappuccino?
Para Mau, Lu, Rô e Du.
Antes de mais nada, quem ler esse relato daqui a alguns anos é importante frisar, ressaltar, sublinhar, enfatizar que o Brasil de 2022 estava um caos. Não que antes não estivera ou que de repente ainda não esteja, mas naquele ano foram descortinadas as piores faces da miséria humana. Um mundo pós-pandêmico? Pós apocalíptico? Defina como quiser. Aqui, alguns dados: trinta por cento da população brasileira em estado de insegurança alimentar. Tem noção do que é isso? Pessoas que talvez tenham uma ou duas refeições ao dia, mas com total incerteza de conseguir se alimentar nos próximos dias, nas próximas horas. Trinta por cento! O que causa mais choque é que o Brasil sempre fora o país com maiores recordes mundiais na produção de alimentos. Há quem diga que se perca muito desses produtos. Comida no lixo. Gente com fome. Quer mais? Cidade de São Paulo, maior centro econômico da América Latina, um recorte de Brasil gentrificado, cento e vinte mil pessoas morando nas ruas. Você leu corretamente. Imagina que cerca de 5.220 municípios brasileiros têm menos gente do que esse quantitativo e olha que o país nem chega a ter 6.000 cidades. Coroando esse cenário sombrio, estamos prestes às eleições presidenciais. Sombrio porque a experiência das eleições de 2018 foram no mínimo revoltantes. Fake News, deep/dark web, alusão à ditadura militar, crianças querendo voltar pra Disney revoltadas com o dólar a 2,70 (mal sabendo como iria ficar ao final de 4 anos), enfim, deu no que deu. Estamos em setembro. O presidente atual tenta a reeleição e não sabemos o que esperar nas próximas semanas.
Voltemos a
São Paulo. Bandinhas com marchinhas de
carnaval cheias de sarcasmo desenham as ruas do centro da cidade. Não é fevereiro, vocês lembram, né? Mas é campanha eleitoral. O carrinho de
som puxado por uma bicicleta e uns artistas com perna de pau no pelotão de frente da manifestação convidam os transeuntes a seguirem
aquele protesto num domingo de temperatura amena. Olha que legal! Deve ser
bloco de esquerda, todo mundo de vermelho. O pessoal da esquerda sabe fazer uma
animação gostosa.
Eles são inteligentes
e perspicazes. A cerveja do vendedor que acompanhava aquele pessoal estava
geladinha. Dez reais! O preço tá bom. Afinal, é protesto raiz. Da galera que ler Hegel,
Nietzsche, Sartre ou mesmo o bom e velho Marx, usa camisa colorida, bolsa
transpassada no peito e um tênis basiquinho
com meias à mostra. O almoço seria ali perto, mas como era um
restaurante bem disputado, novo na cidade, a fila de espera estava com previsão de uma hora no mínimo. Os nossos protagonistas desse
relato, ao ver o bloquinho passando, nem pensaram duas vezes. Deixaram o nome lá no restaurante e se esbaldaram
naquela alegria efusiva, carnavalesca e de cunho social pujante. Aquilo rendeu
alguns stories, provocação nos grupos
de família, do
trabalho... Deboche inteligente com aqueles que ousavam proferir o voto para o
candidato da reeleição.
Que
alegria, o tempo passou rapidinho. Seguiram para o almoço quase três da tarde. A experiência do restaurante foi razoável. O cardápio cheio de brasilidades: castanha
de sapucaia, moqueca de pintado, massas com cogumelos yanomamis, bolo de fubá, geleia de jabuticaba, chá com nibs de cacau, vinho orgânico produzido por mulheres. Enfim.
Nada mais apropriado para aquele grupo engajado de consumidores conscientes, politicamente
corretos e que discutiam tendências de decoração.
O domingo
seguia largo. Fazia sol, mas, como disse, não passava dos 20 graus Celsius. Um
convite para um passeio a pé entre amigos surgiu.
Deixaram então o centro e comentaram revoltados sobre o preço do estacionamento naquelas bandas.
O centro já não era o mesmo. Tinha estacionamento
cobrando sessenta reais, acredita!? Vamos pra onde, meninos? Pronto, avenida
Paulista. E rumaram para o novo destino. Pararam o carro por ali perto e
caminharam com passos lassos até aquele cartão postal um dia inundado de patos de
borracha e de gente empunhando cartazes com frases mais ou menos assim: “mãe, deixei a cama desarrumada e saí pra arrumar o Brasil”. Tente não rir. Você leu correto. Uma busca rápida no Google “protestos Brasil 2018” vai te mostrar isso e muito mais.
Foi drástico. O desfecho
foi a cadeia de acontecimentos que culminou no que está relatado no primeiro parágrafo desse texto.
A rua
estava cheia de gente, skates, bicicletas, pets, música, dança. Ainda bem que eles bloqueiam essa
parte da cidade. É a praia do
paulistano. Quem mora à beira do mar
agora deve ter dado uma boa gargalhada. Eu dei. Mas cada um usa o que tem, né? Tem gente que sai do nordeste pra
tirar foto no domingo naquele lugar com legendas do tipo “domingo de sol especial”. Vai entender. Mas os nossos amigos
aqui não estavam muito
afeitos a fotos àquela hora. O
limite de stories já tinha sido
atingido com a passagem da bandinha mais cedo. Seguiram caminhando bem desinteressados,
rindo e lembrando da festa que foram na noite anterior. De longe, avistaram
outro grupo de ativistas. Não tinha música, ao contrário, o tom de voz mais enérgico, quase vociferando num
megafone chamou a atenção. A roupa do
grupo não tinha uma cor
definida, mas certamente era de esquerda aquele pessoal. Ouviam-se coisas como
palavra de ordem, comida para todos, desigualdade social... E os amigos foram
chegando mais perto para ouvir aquele discurso consciente e necessário. Viram a bandeira de um partido.
Confirmaram, era uma galera de esquerda, mas uma esquerda mais esquerda, sabe?
Daí a pouco, sobe num palanque improvisado
com caixotes um candidato a deputado
estadual. As palavras dele logo de início causaram muita comoção, os ouvintes
gritavam e o nossos amiguinhos ali no fundo do protesto também. Pela regência verbal e pela concordância gramatical empregadas, aquele
orador provavelmente não tinha o
substrato acadêmico dos
grandes filósofos do
socialismo. Ele falava mesmo de alma, como quem compartilhava do desespero
daqueles trinta milhões de famintos
ou dos milhares de desabrigados. De repente, ele começa a dizer que independente de quem
ganhasse as eleições
presidenciais aquele ano, quem estava fodido, ia continuar fodido, porque o
regime democrático brasileiro
nunca foi inclusivo com os pobres e exemplificou que, com a grana que a galera
gasta pra financiar as eleições, pra ser
político eleito no
Brasil tem que ser muito rico. E gritou: o problema do Brasil é a burguesia! Abaixo a burguesia! E
o grito de ordem ecoou entre os manifestantes, que pulavam e repetiam com
ferocidade “Abaixo a
burguesia! Abaixo a burguesia!”. Bem, os
meninos continuavam lá no fundo, mas
se entreolharam assim meio constrangidos, meio sem graça, até que um deles rompeu o silêncio com um convite: gente, vamos
tomar um cappuccino? E atravessaram a rua.
segunda-feira, agosto 01, 2022
repente dos corações partidos
pessoas que amam demais
o surfista de pipas
para D.
montanhismo
para D.
os mais íngremes picos:
teus mamilos
assentamentos legítimos
São Paulo-SP, 28 de março de 2022.
(sem título)
para D.
às vezes te vigio de longe
só pra saber se estás bem
pergunto de ti a outros
e o sorriso me vem
se foi encantado
ou chispa do acaso
feitiço das matas na noite estrelada
confesso, nunca cri
o que sei
e sinto
é sim:
tenho saudades
saudades, mesmo perto de ti
São Luís-MA, 03 de maio de 2022.
sobre teu beijo
para D.
o homem-sem-alma
quem conquisa um poema?
esperando você chegar
há momentos para poesia
Para Sônia Almeida.
no tempo dos sonhos
(sem título)
menino do rio/Rio
sobre os sonhos
a loucura e o maratonista
abraços invisíveis
para os que habitam as ruas
grão de areia
(sem título)
os jardins que trago em mim
1.000 e tantos quilômetros
pele da terra, grão
arranha tegumento mão
esquivo o olhar
debruçando teu ventre
à beira mar
me calas em vão
chão
bruto
duro
firmo meus dedos
impuros
tuas tetas tremem no atrito
dessa carne viril
gemes
gozas
e ris
atravessas quilômetros mil
e vens habitar
por segundos
em mim
Recife-PE, 03 de abril de 2022.
Haikai
Numa tarde trivial, passando ali no finzinho da Paulista (ou no começo), entrei na Casa das Flores. Gosto dali. Uma moça muito simpática me convidou para uma oficina de haikai (haiku, se preferirem). Meu espanto foi o mesmo da maioria de vocês, suponho. Nunca tinha ouvido falar no que raios era esse tal "haikai". Busquei no google pra não assumir a total ignorância e, como envolvia poesia, sentimentos, arte japonesa, topei. Há um rigor no haikai. É pra ser um terceto e há de ser observar três elementos: forma, corte e kigo (termo japonês para a estação do ano). Gostei da simplicidade do verso. É como se fosse um ikebana literário. Saí de lá um especialista em desaprender! Desconstruí e compus meus haikais abrasileirados (mas nem por isso menos líricos), como a seguir:
segunda-feira, junho 01, 2020
a brutalidade não merece título
ou amarelo
vermelho (cubano)
é do humano
a pele que pesa
séculos e séculos
a mazela
fria
da economia
feudal
é preta!
nem branco
vemelho
cinza, espelho
embaçado?
metais
pesados
a cana, o cano
da pistola
engasgado
vermelho, um tijolo
branco soldado
preto culpado
ecoa o refrão:
- Hey, people, leave those kids alone!
Pink ou George
flores ou Floyds
mortos
no chão
quinta-feira, maio 14, 2020
five o'clock
alquímicos, farináceos sentimentos
umedecem espessos
como a grossa nuvem
que embaça
a paisagem.
ali, homens, mulheres, os pequenos
todos são sedentos e silêncio.
a espreitar pelas frestas da vida
repousam o olhar primeiro
como o encontro do inverossímil.
narinas atentas, percebem?
ela agora nos força a felicidade
com notas de laranja e canela
e não há quem resista
atravessa involuntário a goela
chega no interstício
da alma do poeta.
salvemos o mundo
revolucionemos a Terra
como aqueles dedos cautos
generosos, sem dolo
amaciemos a vida
e assemos, à tarde, bolo
o menino e o mar
ir ao alto
tomar longo hausto
destravar o claustro
o cinza
banir
há de se fugir
despir-se de qualquer manto
desembaçar o vidro
do escafandro
as pupilas
de todo ser.
há de se calar
ouvir o canto
menino casto
qu’inda mora
nas revôltas
brumas
do (a)mar
o assassinato natalino
hauria-a devotado
tombava pois no terreiro
morria decapitado
ferviam água em caldeiras
ateavam-na o corpo flácido
arrancavam-lhe do couro tudo
ardia no forno, tostado
o sangue, reservaram antes
(quiçá engrossar um caldo)
daquele dado em sacrifício
de mau grado
depois, viva!
começa a festa cristã:
sua estrela maior morre bêbada
de véspera
e pagã
lira singela, Lia
seus olhos de um século
me sorriem meninos!
digo “a mim” num clamor narcísico
pois ela ri ao mundo igual
é que me toca a alma
com a calma duma brisa
e a fúria dum vendaval
e me tira os pés do chão
(ainda há chão?)
nada mais me prende,
sou liberto
encontro lá: paulos, teresas, gilbertos
e numa ciranda bonita
de cantigas puras
e duras,
nascida da dor
do belo
giramos, giramos, giramos...
entre lágrimas, a alegria
florescida nos lábios de Lia
sexta-feira, abril 10, 2020
seduzir-te
teu ventre cafuzo
sábado, março 21, 2020
viagens à nárnia
do passado do agora
com dor, abro os braços
sem ais
os termais
condor
voo mais
as penas
do mundo sinto
apenas
com dor
fecho os olhos
as películas da retina
o bico que criva o ar
rapina
minha sina
seguir abismos
com dor
condor
movo, maestro dos céus
sinto
vento pulsar tormento
é que rasgo montanhas
sedento
de lonjuras de alturas de mim
condor
sem dor
senhor
de meu fim