Tenho tanta saudade de mim...

segunda-feira, agosto 29, 2022

vamos tomar um cappuccino?

Para Mau, Lu, Rô e Du. 

Antes de mais nada, quem ler esse relato daqui a alguns anos é importante frisar, ressaltar, sublinhar, enfatizar que o Brasil de 2022 estava um caos.  Não que antes não estivera ou que de repente ainda não esteja, mas naquele ano foram descortinadas as piores faces da miséria humana. Um mundo pós-pandêmico? Pós apocalíptico? Defina como quiser. Aqui, alguns dados: trinta por cento da população brasileira em estado de insegurança alimentar. Tem noção do que é isso? Pessoas que talvez tenham uma ou duas refeições ao dia, mas com total incerteza de conseguir se alimentar nos próximos dias, nas próximas horas. Trinta por cento! O que causa mais choque é que o Brasil sempre fora o país com maiores recordes mundiais na produção de alimentos. Há quem diga que se perca muito desses produtos. Comida no lixo. Gente com fome. Quer mais? Cidade de São Paulo, maior centro econômico da América Latina, um recorte de Brasil gentrificado, cento e vinte mil pessoas morando nas ruas. Você leu corretamente. Imagina que cerca de 5.220 municípios brasileiros têm menos gente do que esse quantitativo e olha que o país nem chega a ter 6.000 cidades. Coroando esse cenário sombrio, estamos prestes às eleições presidenciais. Sombrio porque a experiência das eleições de 2018 foram no mínimo revoltantes. Fake News, deep/dark web, alusão à ditadura militar, crianças querendo voltar pra Disney revoltadas com o dólar a 2,70 (mal sabendo como iria ficar ao final de 4 anos), enfim, deu no que deu. Estamos em setembro. O presidente atual tenta a reeleição e não sabemos o que esperar nas próximas semanas.

Voltemos a São Paulo. Bandinhas com marchinhas de carnaval cheias de sarcasmo desenham as ruas do centro da cidade. Não é fevereiro, vocês lembram, né? Mas é campanha eleitoral. O carrinho de som puxado por uma bicicleta e uns artistas com perna de pau no pelotão de frente da manifestação convidam os transeuntes a seguirem aquele protesto num domingo de temperatura amena. Olha que legal! Deve ser bloco de esquerda, todo mundo de vermelho. O pessoal da esquerda sabe fazer uma animação gostosa. Eles são inteligentes e perspicazes. A cerveja do vendedor que acompanhava aquele pessoal estava geladinha. Dez reais! O preço tá bom. Afinal, é protesto raiz. Da galera que ler Hegel, Nietzsche, Sartre ou mesmo o bom e velho Marx, usa camisa colorida, bolsa transpassada no peito e um tênis basiquinho com meias à mostra. O almoço seria ali perto, mas como era um restaurante bem disputado, novo na cidade, a fila de espera estava com previsão de uma hora no mínimo. Os nossos protagonistas desse relato, ao ver o bloquinho passando, nem pensaram duas vezes. Deixaram o nome lá no restaurante e se esbaldaram naquela alegria efusiva, carnavalesca e de cunho social pujante. Aquilo rendeu alguns stories, provocação nos grupos de família, do trabalho... Deboche inteligente com aqueles que ousavam proferir o voto para o candidato da reeleição.

Que alegria, o tempo passou rapidinho. Seguiram para o almoço quase três da tarde. A experiência do restaurante foi razoável. O cardápio cheio de brasilidades: castanha de sapucaia, moqueca de pintado, massas com cogumelos yanomamis, bolo de fubá, geleia de jabuticaba, chá com nibs de cacau, vinho orgânico produzido por mulheres. Enfim. Nada mais apropriado para aquele grupo engajado de consumidores conscientes, politicamente corretos e que discutiam tendências de decoração.

O domingo seguia largo. Fazia sol, mas, como disse, não passava dos 20 graus Celsius. Um convite para um passeio a pé entre amigos surgiu. Deixaram então o centro e comentaram revoltados sobre o preço do estacionamento naquelas bandas. O centro já não era o mesmo. Tinha estacionamento cobrando sessenta reais, acredita!? Vamos pra onde, meninos? Pronto, avenida Paulista. E rumaram para o novo destino. Pararam o carro por ali perto e caminharam com passos lassos até aquele cartão postal um dia inundado de patos de borracha e de gente empunhando cartazes com frases mais ou menos assim: mãe, deixei a cama desarrumada e saí pra arrumar o Brasil. Tente não rir. Você leu correto. Uma busca rápida no Google protestos Brasil 2018 vai te mostrar isso e muito mais. Foi drástico. O desfecho foi a cadeia de acontecimentos que culminou no que está relatado no primeiro parágrafo desse texto.

A rua estava cheia de gente, skates, bicicletas, pets, música, dança. Ainda bem que eles bloqueiam essa parte da cidade. É a praia do paulistano. Quem mora à beira do mar agora deve ter dado uma boa gargalhada. Eu dei. Mas cada um usa o que tem, né? Tem gente que sai do nordeste pra tirar foto no domingo naquele lugar com legendas do tipo domingo de sol especial. Vai entender. Mas os nossos amigos aqui não estavam muito afeitos a fotos àquela hora. O limite de stories já tinha sido atingido com a passagem da bandinha mais cedo. Seguiram caminhando bem desinteressados, rindo e lembrando da festa que foram na noite anterior. De longe, avistaram outro grupo de ativistas. Não tinha música, ao contrário, o tom de voz mais enérgico, quase vociferando num megafone chamou a atenção. A roupa do grupo não tinha uma cor definida, mas certamente era de esquerda aquele pessoal. Ouviam-se coisas como palavra de ordem, comida para todos, desigualdade social... E os amigos foram chegando mais perto para ouvir aquele discurso consciente e necessário. Viram a bandeira de um partido. Confirmaram, era uma galera de esquerda, mas uma esquerda mais esquerda, sabe?

Daí a pouco, sobe num palanque improvisado com caixotes um candidato a deputado estadual. As palavras dele logo de início causaram muita comoção, os ouvintes gritavam e o nossos amiguinhos ali no fundo do protesto também. Pela regência verbal e pela concordância gramatical empregadas, aquele orador provavelmente não tinha o substrato acadêmico dos grandes filósofos do socialismo. Ele falava mesmo de alma, como quem compartilhava do desespero daqueles trinta milhões de famintos ou dos milhares de desabrigados. De repente, ele começa a dizer que independente de quem ganhasse as eleições presidenciais aquele ano, quem estava fodido, ia continuar fodido, porque o regime democrático brasileiro nunca foi inclusivo com os pobres e exemplificou que, com a grana que a galera gasta pra financiar as eleições, pra ser político eleito no Brasil tem que ser muito rico. E gritou: o problema do Brasil é a burguesia! Abaixo a burguesia! E o grito de ordem ecoou entre os manifestantes, que pulavam e repetiam com ferocidade Abaixo a burguesia! Abaixo a burguesia!. Bem, os meninos continuavam lá no fundo, mas se entreolharam assim meio constrangidos, meio sem graça, até que um deles rompeu o silêncio com um convite: gente, vamos tomar um cappuccino? E atravessaram a rua.

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