Ditado por alguém, num
surto qualquer, num domingo a noite.
Tenho tanta saudade de mim...
domingo, maio 13, 2012
terça-feira, maio 01, 2012
inundar-se de amor
Não por medo, meu bem,
deste amor que me desloca
da estiagem de ordinários dias
à maresia de tua boca.
Se é no silêncio que te devoto
minh'existência com versos ridículos,
[antigos, remotos...
[antigos, remotos...
Não é por frieza a qual me advogas,
nem mesmo por ausências hipócritas.
É que esta paixão, ou amor – não importa,
traz-me vertigem e me agita
qual mar revôlto e um desavisado banhista
que no azul se afoga.
Como ele, desesperado, parte de mim grita,
a outra, impotente,
sufoca.
quinta-feira, março 15, 2012
a Maria-João
Era um macho. Apesar da
composição genética xis-xis, dos cinco filhos, da relação monogâmica com ser um
xis-ípsilon, das regras mensais, das TPM e outras tensões que haveria de ter,
era de fato um macho!
Acordava cedo todos os dias e
logo punha sua bermurda larga, camiseta pouco cavada, sem soutien (claro) e se
entregava à rotina pesada: primeiro café, depois temperar almoço, por roupas na
máquina, assar as carnes, arrumar a mesa, fazer mais café, mais roupa, mais
louça e no final, merecidamente, uma rede.
Se fora pelo simples fato da
rotina pesada, que não é privilégio seu, afinal suas vizinhas haviam de tê-lo,
não a enquadraria nesta sinonímia de gêneros, igualando-a a um homem, exceto
pela ausência de determinado “apêndice” no entrepernas. O fato é que falava e
agia como tal. Elogiava as morenas seminuas das revistas, vangloriava-se ao
notar um belo par de seios ao andar pelas ruas, assistia telejornais a novelas,
mantinha os cabelos curtos e aparados, sentava-se e nunca cruzava as pernas,
falava de assuntos picantes (tabus para mulheres de sua década) com o ar
pilhérico dum gajo etc. Faltava-lhe apenas o nome de João.
Maria, ou João, ou Maria-João
poderia ter escolhido outra vida, mas preferiu a sua. O marido viajava muito a
trabalho, ficava assim livre de seu temperamento imperativo e, obviamente, do
seu pênis que só a procurava com intenções procriatórias. Transara pouco em sua
vida inteira. Assim melhor, pensava
ela. Achava o falo um objeto estranho, asqueroso; aquilo se era introduzido em
cavidades e orifícios úmidos, sede de eventuais corrimentos em mulheres incautas, ou senão no ânus mesmo de quem o permitisse. Credo, longe de mim isto!
Passado os anos, o esposo
aposentado, agora radicado no fundo de uma rede, chato e impotente fodia-lhe,
mas era a paciência. Maria, faz-me aquilo! Maria, faz-me isto! Maria... Vai pro diabo que te carregue!, desejava
ela. Ficara tão mais áspera com toda esta masturbação mental diária do marido
que nem parecia a mesma. Tornara-se triste.
Certo dia, vendo o telejornal do
meio dia (enquanto o marido glutão tirava sua sesta e bombardeava o quarto com
flatos), Maria assistia atentamente a uma reportagem: Mulher após 30 anos de casamento, separa-se do marido para viver com
outra mulher! Aquilo lhe soara mágico e inimaginável até então. Era quase
um sopro de libertação. Extasiada, em epifania, Maria olhou as mãos,
viu-as enrugadas: o tempo havia chegado também para si. Sua mente então calou. Depois,
como de costume, num ímpeto movimento, zás, levantou-se e desligou a televisão.
Ahhh, agora não tem mais graça. E foi
cuidar de sua vida.
terça-feira, março 13, 2012
Apartamentos e antidepressivos
Há três dias não lhe tinham
notícias. Não que fosse isto uma eventualidade: era dada a sumiços, claustros
intermináveis, cisões com o mundo. Era no mínimo excêntrica (para não se dizer
esquisita). Não se sabe se tudo tinha se agravado pela sua irregularidade
menstrual, pela menopausa que se aproximava ou pelos calores que ora já a consumiam.
Mas como tampouco era dada a pudores, usava saias bem rodadas e quando lhe
vinham à face os fogachos, levantava-as e as transformava em abanos indiscretos.
Sempre fora assim. Sempre. Mas há três dias, há três fatídicos dias, não se
tinha notícias dela. É que prometera aparecer ontem, apesar de imprevisível, nunca
falhava seus compromissos, nunca até então.
Naquela mesma tarde, um
telefonema. Uma estranha: falava duma vizinha, dum carro do IML, mas como
estava muito nervosa ao telefone, não passou a informação com precisão. A única
coisa clara foi:
- Venham à casa de dona Marta!
Assim o fizeram. De fato o pior
ocorrera. Ataque cardíaco fulminante, disseram. No dia seguinte enterraram-na.
O luto demorou dois meses. Era,
apesar de tudo, querida. Sessenta dias pareceu-lhes digno. Depois chamaram o
advogado e o espólio foi logo tratado. Mesmo muito jovem para os padrões de
mortes atuais, ela incrivelmente já dispunha de testamento. Como não tinha
herdeiros diretos, punha a distribuição de seus bens ao sabor de seus agrados. À
irmã mais velha, nada, afinal já era rica. À do meio, um piano velho que
trouxera do casarão antigo dos pais. A casa, esta ficou para um asilo do qual
sempre fora fiel colaboradora e um inesperado seguro de vida, este o deixou a
sobrinha solteira e quase quarentona, como ela.
Isto foi a gota d’água. Eu? Logo
eu? Por que haveria de me deixar este seguro? Não entendia. Tudo virou de
pernas pro ar para aquela solteirona que ficara pra titia. Ou melhor, ficara
com o seguro da titia. Até aquele dia sempre fora regrada, saudável, mas desde
então caíra em profunda tristeza e melancolia, culpando-se de uma morte
inevitável pelo simples fato de haver sido escolhida depositária de seguro de
vida! Pronto, não teria mais paz.
Antes de a tia vir a óbito, a
solteirona, que também era gorda, havia planejado comprar um apartamento para
si. Apesar de viver com folga na casa dos pais, sentia que um dia precisaria
dum canto seu. O dinheiro do tal seguro era suficiente para quase 80% do valor
do imóvel já em vista. Os outros 20% decerto já os tinha. Mas por que ela, meu
Deus? Por que aquele dinheiro funesto? Será que a tão estimada tia haveria de
morrer pra que ela pudesse comprar o apartamento!? Aquilo não haveria de estar certo!
Como o sentimento de culpa já lhe
havia tirado o sossego e o sono, procurou auxílio médico. Um psiquiatra! Indicaram-lhe.
Assim o fez. Foi no mais caro, havia de ser o melhor. E vieram as medicações, e
nada de efeito, e mais retornos, e nada de efeito. Passou um ano, dois, mais
outros. E assim, todo o dinheiro herdado se transformara em remédios e análises.
Desde então as vezes se põe vaga e pensativa. Agora, estaria ela finalmente
livre da maldição da tia?
Já se foram 10 anos e o
apartamento virou Lexotan®.
domingo, fevereiro 26, 2012
Saudade de mim
Damos-lhe apenas nomes. A
humanidade tem experimentado os mesmos sentimentos desde toda sua existência: as
mesmas taras, os mesmos medos, as ambições, tragédias, gozos e as mesmas
afecções psíquicas. O que mudou é que os classificamos, categorizamos e
sistematizamos ao longo do tempo. Temos-lhes atribuídos diagnósticos e
terapêuticas. Isto se deve ao fato de atualmente vivenciarmos o melhor
entendimento do homem pelo homem; o que filósofos gregos, grandes pensadores,
renascentistas e demais mentes brilhantes postulavam sobre o funcionamento
orgânico do homem e sua interação com o entorno, agora é de real conhecimento
as suas fórmulas químicas, seus espectros de ação, seus receptores coadjuvantes
e seus desencadeamentos fisicoeletroquímicos, ao que vulgarmente chamamos de
sentir.
Nesta constatação quase primaz,
tem-se a sensação da autossuficiência; que o homem é in totum o senhor de si e que suas interações moleculares são
suficientes para o entendimento da postura humana ante eventos satisfatórios ou
trágicos. Ousa-se ainda afirmar que este conhecimento enfrenta inclusive as
barreiras que limitavam o homem físico da sua existência sobrenatural: é como
se nomina o poder noético da ciência contemporânea.
Infelizmente, o que é inevitável
é o contínuo desassossego do ser, mesmo este sendo possuidor da sabedoria
suprema de si, fazendo persistir a vivência dos mesmos desejos, aflições e
prazeres de outrora. E nesta hermenêutica da construção da consciência humana
(mesmo que esta ocorra quase que inconscientemente), o homem sempre se esbarrará
nos pilares da sua formação, fincados sob a égide do “se”. Como se a existência
e a evolução da vida fossem detentoras da dualidade de escolhas, de dois
caminhos distintos que, em marcos históricos, fosse-se determinado
qual estrada percorrer, culminando no que somos hoje. Ora, ao se analisar o que
nos tornamos, é óbvio e categórico afirmar que há apenas um único caminho!
Somos produtos daquilo que todas as sociedades sonharam e continuam a sonhar,
talvez o tempo (a cronologia em si) fosse distinto segundo as escolhas
tomadas, mas o destino seria um só: a liberdade.
Tentarmos ser livres é o que tem
pautado a nossa existência: livres de pensamentos fundamentalistas, de
imposições sociopolíticas ou mesmo de barreiras impostas por nós próprios. A verdade
é que esta liberdade plena é ainda tão distante qual fora no passado. E é por
isso que agora percorro esta linha tênue que separa a loucura da sanidade
imbuído de um espírito inquieto e desbravador, mesmo com a visão turva e a
mente obnubilada. É que já nasci fadado a deter este desejo que me parece
inatingível e por isso me arrebenta o peito uma dor tão grande e asfixiante
como se fora saudade, como se fora saudade de mim.
quinta-feira, fevereiro 23, 2012
Quarta feira de cinzas
Papéis, talco e urina
melam as ruas, infectam esquinas
Resquício de transgressões
da festa em que até "machões"
rebolam e se amofinam,
trocam de sexo, suas messalinas!
Perdem o nexo:
sexo sem camisinha!
Acabando em ressaca
ou mesmo em desgraça
Numa quarta feira qualquer,
cheia de cinzas.
terça-feira, fevereiro 07, 2012
Sobre surdez e castanhas
E atenção! Imperdível! Super
descontão torra-torra! Planos de pagamento a perder de vista. IPI reduzido! Não
percam esta oportunidade de...
- João, abaixa essa maldita
televisão!
Um grito ecoou lá da cozinha. Era
Sebastiana, a Sibá, uma senhora de seus sessenta e muitos anos, aposentada,
histérica e mulher de João. Viviam sozinhos numa casa de estilo europeu, alta,
austera, telhado em vê, com sótão e tudo mais. Uma empregada vinha com
frequência semanal. Havia de lavar e gomar as roupas do casal, além da faxina
em geral. Ele, o velho, ex-combatente de guerra, havia levado um balaço na face
e perdera a audição do lado direito e agora chegando quase à oitava década de
vida, tinha de usar um aparelhinho minúsculo noutra orelha para que pudesse
ainda ouvir algo, além disso, sofria de tremores que até então ninguém lhe
havia diagnosticado. Há de ser a doença do Papa! Dizia ele todo orgulhoso aos
curiosos de seu estado de saúde.
Sibá tinha manias. Dentre muitas,
uma era bastante peculiar. Não se sabe se era para ajudar o marido, que já não
ia muito bem da memória, ou se por falta do que fazer mesmo, o fato é que ela
passou a espalhar etiquetas por toda a casa. No banheiro punha “TOALHA DE ROSTO”
na parede do espelho incrivelmente ao
lado duma toalha. Havia etiqueta em tudo. Desde xícara, vassoura, televisão até
o nome dos cômodos da casa. O mais bizarro, porém, foi quando chegamos numa das
visitas raras que a fazíamos e vimos do lado de dentro do portão principal a
seguinte mensagem: "CUIDADO COM O CÃO! "Com um um sinal de exclamação no
final da frase mesmo! É pra eu não esquecer o portão aberto e o cachorro sair.
Explicava ela sorrindo como se fora a coisa mais normal do mundo.
Certo dia, num dos passeios ao
mercado central, Sibá encontrou castanhas de caju. João adora castanhas.
Acordara de bom humor: comprou meio quilo e levou de presente ao marido.
Chegando em casa, encontrou-o sentado na sala, lendo o jornal. Entrou, falou e
nada. Viu na mesinha ao lado que ele havia retirado o aparelho da audição.
Pôs-se então diante dele, abaixou-lhe o jornal e fez mímica ordenando que
pusesse aquele bendito botão marrom na orelha afim que se fizesse ser ouvida.
Assim ele o fez.
- João, trouxe castanhas pra ti.
Tu não gostas?
Ele nem deu bola. Resmungou,
tirou o aparelhinho de novo, arrumou o jornal e voltou a sua leitura.
Velho bruto! Sibá largou o
saco de castanhas sobre a mesa ao lado daquele ordinário e foi preparar o
almoço. Um ensopado de camarão faria naquele dia.
João, entretido com seu jornal,
quase que involuntariamente enfiava a mão direita no saco de castanhas enquanto
a esquerda mantinha o periódico diante dos olhos. Levava as castanhas à boca e
as mastigava lentamente. Como sofria de tremores, sempre deixava cair algumas
sobre a mesinha e ao redor da sua cadeira. Lia, mastigava e pensava no camarão
do almoço que comeria às onze e trinta horas daquela manhã. Lia, mastigava e
pensava na sesta que faria logo em seguida. Lia, mastigava e já não pensava em
mais nada. Num destes movimentos, punha uma castanha estranhamente dura na boca.
Mastigava dum lado e nada, do outro e a castanha não se partia. Diaxo! Deve
estar estragada! Tirou-a da boca e a atirou pela janela. Minutos mais tarde,
levantou-se e foi à cozinha. Estranhamente não ouvira as baboseiras da mulher
na hora do almoço. Deve estar zangada, pensou. E Sibá a tagarelar do lado do
marido. Em seguida, o velho, resignado, saiu do recinto, lavou o rosto no
lavabo e se deitou na rede da varanda. Dali acordaria somente depois da novela
da tarde.
Às quatorze e trinta horas dona
Sebastiana abriu o portão para Maria, a empregada. Maria lavou a louça do
almoço, limpou a cozinha e os banheiros, pôs as roupas na máquina de lavar e enquanto as
aguardava para por no varal, varria a pequena área próxima ao jardim que rodeava as
janelas da sala. Num canto daquele terraço luzia um estranho objeto de
plástico. Tomou-o às mãos: era meio redondo, de cor marrom, cheio de pequenos sulcos, como se fora
marca de dente. Maria o trouxe e entregou à dona da casa.
- Este imbecil...
Sibá ligou para a assistência
técnica do aparelhinho e João ficou surdo por uma semana.
sexta-feira, janeiro 20, 2012
O velho que secava dinheiro
No meio do fim do mundo, socada num pé de serra, erguida sobre uma calçada de pedra, paredes de taipa, rebocadas com massapê duro secado sob o sol pesado dos trópicos, jazia a casa dum velho rabugento. Distava a exatas duas léguas doutras residências das redondezas que dispunham igual formato e tinham o mesmo cheiro de couro de vaca curtido que compunham maior parte do mobiliário da época. Logo na varanda, amarrada com relhos de carneiro, dormia uma rede de alvura angelical tecida de linho grosso e com as beiradas que dançavam as rendas do varandão confeccionado pela dança frenética dos bilros que com seu titilar trançavam habilmente nas mãos de dona Zefa, a mulher do seu Manel, o velho da casa.
Aquela casa fedia a tempo. Pendurados na parede maior da sala rústica, iluminadas pela lamparina de querosene, emboloravam a foto de São João Batista menino e o retrato do casal, de preto e branco, com detalhes pintados a mão pelo retratista que passava numa freqüência anual por entre as famílias da região. Geralmente vinha quando sabia do casamento de alguém. Sempre se reservava o dinheiro para este luxo: a moça dava o dote pro marido começar a vida e, separado deste montante, o dinheiro do retratista. Quase como regra, um dogma tão importante quanto o fato de sempre se encaixar a data do casório na época das desobrigas. Afinal, deslocar-se até a cidadezinha pra casar havia de ser caro, melhor mesmo esperar o frade vir até eles.
O velho da casa, apesar de rabugento e aparentemente maltrapilho, com suas calças de costuras reforçadas, blusa de remendos, cara amassada talhada pela dureza do tempo e barba malfeita, era um senhor de posses. Tinha sempre café, açúcar cristal, mel, carne fresca (das vacas que abatia quinzenalmente) e tabaco. Tinha até dinheiro em espécie que guardava bem dobrado numa caixa de lata quadrada que em geral se acondicionava a pólvora. Como a umidade era grande na região e a qualidade do papel não era decente, não raro via-se o velho depositar sobre a calçada de pedras, sob o sol a pino, nota por nota do seu dinheiro, revirando-as sincronicamente para que pudessem evitar o mofo, já que as grandes compras de tecidos, cereais, temperos e outras finezas eram feitas sempre depois do inverno nos mercados da cidade mais perto, uma vez ao ano. Munido de um pedaço de pau, o seu Manel enxotava as galinhas, o cachorro ou mesmo a velha sua senhora caso algum ousasse se aproximar da sua fortuna.
Um certo dia, deitado na rede da varanda, com o chapéu cobrindo parte do rosto, a blusa desabotoada até a metade, com uma perna do lado de fora se balançando devagar, o velho recebeu uma visita. Eram dois garotos, um era filho dum vizinho.
- Seu Manel, o pai disse que era pro senhor mandar um litro de mel!
Num movimento lento, o velho tirou o chapéu da cara, olhou bem a figura dos meninos. O moreninho magricela, cabelo arrepiado vestindo um calção de feltro com um rasgo na barra, descalço e nu da cintura pra cima era o filho do vizinho. O outro, o outro não era dali, era alourado, branco rosado, meio gordinho, trajando calça curta de linho e uma camiseta de cambraia; havia de ser da capital. Seu Manel resmungou, acenou com a cabeça e disse:
- É pro tcho pai adoçar o café, né?
- E esse daí, num é da cidade? Por que não trouxe o açúcar?
- Eu trouxe Seu Manel. É que acabou... Respondeu o menino de fora.
- Pois bem, fale com aquela cascavel véia que ta ali no jirau. Falou o velho apontando para o rumo onde estava a sua senhora. Moravam apenas aquelas duas criaturas na casa, mas incrivelmente nunca se falavam, nunca!, exceto quando para trocar insultos e xingamentos.
A velha, gorda e feia, ouvindo as sandices do marido, de imediato retrucou.
- Cascavel é a tua mãe, velho caduco!
Apesar da feiúra e da corpulência da dona Zefa que mal cabia sentada no tamburete da cozinha, era uma senhora doce e generosa. Acho que por tamanha bondade ainda não tinha dado cabo da vida do velho. Ali, enfiada no meio do nada, por veneno na comida do Manel e depois jogar seu corpo ribanceira abaixo não haveria de ser tarefa árdua. Ao contrário, aceitava aquela convivência doentia por talvez acreditar que se vivesse no purgatório em vida, havia de passar direto pro lado do Nosso Senhor Jesus Cristo quando chegasse sua hora. Bem, se ela de fato logrou êxito, até hoje ninguém sabe.
- Vem cá meu fí, deixa esse véi de lado que ele ta ficando é doido. Eu conheço teu pai, lá da cidade. Tome, apanhe o mel, vá logo simbora antes do Manel... Vá, vá.
O menino ainda meio estupefato com a recepção do dono da casa, arregalou os olhos com a ameaça da velha, pegou o litro de cachaça 51 com uma rolha de sabugo de milho metida no gargalo, cheio de mel de tiúba e, junto com o garotinho da vizinhança, saíram correndo terreiro acima até atravessarem o portal da fazenda. O desespero era tamanho que no meio da correria não vira uma pedra, levou uma topada, caiu e o vidro mel, sacando de suas mãos, misturou-se todinho com a areia da estrada.
- O diabo é quem volta na casa daquele véi!
Sujos e desconfiados, os meninos chegaram na casa, não acharam ninguém. Decepcionados com a perda, foram na cacimba, tomaram banho, trocaram a roupa e voltaram pra casa. Sentados contritos na varanda, esperaram o pai do menino chegar da roça. Naquela noite iriam tomar café amargo.
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