Há três dias não lhe tinham
notícias. Não que fosse isto uma eventualidade: era dada a sumiços, claustros
intermináveis, cisões com o mundo. Era no mínimo excêntrica (para não se dizer
esquisita). Não se sabe se tudo tinha se agravado pela sua irregularidade
menstrual, pela menopausa que se aproximava ou pelos calores que ora já a consumiam.
Mas como tampouco era dada a pudores, usava saias bem rodadas e quando lhe
vinham à face os fogachos, levantava-as e as transformava em abanos indiscretos.
Sempre fora assim. Sempre. Mas há três dias, há três fatídicos dias, não se
tinha notícias dela. É que prometera aparecer ontem, apesar de imprevisível, nunca
falhava seus compromissos, nunca até então.
Naquela mesma tarde, um
telefonema. Uma estranha: falava duma vizinha, dum carro do IML, mas como
estava muito nervosa ao telefone, não passou a informação com precisão. A única
coisa clara foi:
- Venham à casa de dona Marta!
Assim o fizeram. De fato o pior
ocorrera. Ataque cardíaco fulminante, disseram. No dia seguinte enterraram-na.
O luto demorou dois meses. Era,
apesar de tudo, querida. Sessenta dias pareceu-lhes digno. Depois chamaram o
advogado e o espólio foi logo tratado. Mesmo muito jovem para os padrões de
mortes atuais, ela incrivelmente já dispunha de testamento. Como não tinha
herdeiros diretos, punha a distribuição de seus bens ao sabor de seus agrados. À
irmã mais velha, nada, afinal já era rica. À do meio, um piano velho que
trouxera do casarão antigo dos pais. A casa, esta ficou para um asilo do qual
sempre fora fiel colaboradora e um inesperado seguro de vida, este o deixou a
sobrinha solteira e quase quarentona, como ela.
Isto foi a gota d’água. Eu? Logo
eu? Por que haveria de me deixar este seguro? Não entendia. Tudo virou de
pernas pro ar para aquela solteirona que ficara pra titia. Ou melhor, ficara
com o seguro da titia. Até aquele dia sempre fora regrada, saudável, mas desde
então caíra em profunda tristeza e melancolia, culpando-se de uma morte
inevitável pelo simples fato de haver sido escolhida depositária de seguro de
vida! Pronto, não teria mais paz.
Antes de a tia vir a óbito, a
solteirona, que também era gorda, havia planejado comprar um apartamento para
si. Apesar de viver com folga na casa dos pais, sentia que um dia precisaria
dum canto seu. O dinheiro do tal seguro era suficiente para quase 80% do valor
do imóvel já em vista. Os outros 20% decerto já os tinha. Mas por que ela, meu
Deus? Por que aquele dinheiro funesto? Será que a tão estimada tia haveria de
morrer pra que ela pudesse comprar o apartamento!? Aquilo não haveria de estar certo!
Como o sentimento de culpa já lhe
havia tirado o sossego e o sono, procurou auxílio médico. Um psiquiatra! Indicaram-lhe.
Assim o fez. Foi no mais caro, havia de ser o melhor. E vieram as medicações, e
nada de efeito, e mais retornos, e nada de efeito. Passou um ano, dois, mais
outros. E assim, todo o dinheiro herdado se transformara em remédios e análises.
Desde então as vezes se põe vaga e pensativa. Agora, estaria ela finalmente
livre da maldição da tia?
Já se foram 10 anos e o
apartamento virou Lexotan®.
Um comentário:
Gostei demais, principalmente do final...êta, tu és cruel!!!
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