No meio do fim do mundo, socada num pé de serra, erguida sobre uma calçada de pedra, paredes de taipa, rebocadas com massapê duro secado sob o sol pesado dos trópicos, jazia a casa dum velho rabugento. Distava a exatas duas léguas doutras residências das redondezas que dispunham igual formato e tinham o mesmo cheiro de couro de vaca curtido que compunham maior parte do mobiliário da época. Logo na varanda, amarrada com relhos de carneiro, dormia uma rede de alvura angelical tecida de linho grosso e com as beiradas que dançavam as rendas do varandão confeccionado pela dança frenética dos bilros que com seu titilar trançavam habilmente nas mãos de dona Zefa, a mulher do seu Manel, o velho da casa.
Aquela casa fedia a tempo. Pendurados na parede maior da sala rústica, iluminadas pela lamparina de querosene, emboloravam a foto de São João Batista menino e o retrato do casal, de preto e branco, com detalhes pintados a mão pelo retratista que passava numa freqüência anual por entre as famílias da região. Geralmente vinha quando sabia do casamento de alguém. Sempre se reservava o dinheiro para este luxo: a moça dava o dote pro marido começar a vida e, separado deste montante, o dinheiro do retratista. Quase como regra, um dogma tão importante quanto o fato de sempre se encaixar a data do casório na época das desobrigas. Afinal, deslocar-se até a cidadezinha pra casar havia de ser caro, melhor mesmo esperar o frade vir até eles.
O velho da casa, apesar de rabugento e aparentemente maltrapilho, com suas calças de costuras reforçadas, blusa de remendos, cara amassada talhada pela dureza do tempo e barba malfeita, era um senhor de posses. Tinha sempre café, açúcar cristal, mel, carne fresca (das vacas que abatia quinzenalmente) e tabaco. Tinha até dinheiro em espécie que guardava bem dobrado numa caixa de lata quadrada que em geral se acondicionava a pólvora. Como a umidade era grande na região e a qualidade do papel não era decente, não raro via-se o velho depositar sobre a calçada de pedras, sob o sol a pino, nota por nota do seu dinheiro, revirando-as sincronicamente para que pudessem evitar o mofo, já que as grandes compras de tecidos, cereais, temperos e outras finezas eram feitas sempre depois do inverno nos mercados da cidade mais perto, uma vez ao ano. Munido de um pedaço de pau, o seu Manel enxotava as galinhas, o cachorro ou mesmo a velha sua senhora caso algum ousasse se aproximar da sua fortuna.
Um certo dia, deitado na rede da varanda, com o chapéu cobrindo parte do rosto, a blusa desabotoada até a metade, com uma perna do lado de fora se balançando devagar, o velho recebeu uma visita. Eram dois garotos, um era filho dum vizinho.
- Seu Manel, o pai disse que era pro senhor mandar um litro de mel!
Num movimento lento, o velho tirou o chapéu da cara, olhou bem a figura dos meninos. O moreninho magricela, cabelo arrepiado vestindo um calção de feltro com um rasgo na barra, descalço e nu da cintura pra cima era o filho do vizinho. O outro, o outro não era dali, era alourado, branco rosado, meio gordinho, trajando calça curta de linho e uma camiseta de cambraia; havia de ser da capital. Seu Manel resmungou, acenou com a cabeça e disse:
- É pro tcho pai adoçar o café, né?
- E esse daí, num é da cidade? Por que não trouxe o açúcar?
- Eu trouxe Seu Manel. É que acabou... Respondeu o menino de fora.
- Pois bem, fale com aquela cascavel véia que ta ali no jirau. Falou o velho apontando para o rumo onde estava a sua senhora. Moravam apenas aquelas duas criaturas na casa, mas incrivelmente nunca se falavam, nunca!, exceto quando para trocar insultos e xingamentos.
A velha, gorda e feia, ouvindo as sandices do marido, de imediato retrucou.
- Cascavel é a tua mãe, velho caduco!
Apesar da feiúra e da corpulência da dona Zefa que mal cabia sentada no tamburete da cozinha, era uma senhora doce e generosa. Acho que por tamanha bondade ainda não tinha dado cabo da vida do velho. Ali, enfiada no meio do nada, por veneno na comida do Manel e depois jogar seu corpo ribanceira abaixo não haveria de ser tarefa árdua. Ao contrário, aceitava aquela convivência doentia por talvez acreditar que se vivesse no purgatório em vida, havia de passar direto pro lado do Nosso Senhor Jesus Cristo quando chegasse sua hora. Bem, se ela de fato logrou êxito, até hoje ninguém sabe.
- Vem cá meu fí, deixa esse véi de lado que ele ta ficando é doido. Eu conheço teu pai, lá da cidade. Tome, apanhe o mel, vá logo simbora antes do Manel... Vá, vá.
O menino ainda meio estupefato com a recepção do dono da casa, arregalou os olhos com a ameaça da velha, pegou o litro de cachaça 51 com uma rolha de sabugo de milho metida no gargalo, cheio de mel de tiúba e, junto com o garotinho da vizinhança, saíram correndo terreiro acima até atravessarem o portal da fazenda. O desespero era tamanho que no meio da correria não vira uma pedra, levou uma topada, caiu e o vidro mel, sacando de suas mãos, misturou-se todinho com a areia da estrada.
- O diabo é quem volta na casa daquele véi!
Sujos e desconfiados, os meninos chegaram na casa, não acharam ninguém. Decepcionados com a perda, foram na cacimba, tomaram banho, trocaram a roupa e voltaram pra casa. Sentados contritos na varanda, esperaram o pai do menino chegar da roça. Naquela noite iriam tomar café amargo.
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