Tenho tanta saudade de mim...

domingo, dezembro 17, 2017

Alfa, a poesia no meio, e ômega

Despi-me do tempo
Exorcizei o universo
Agora
Sob a grossa camada do silêncio
Seguro o átomo inicial da vida
E o burilo com os dedos
Dou-lhe formato humano
Deposito-o sobre o peito
Faço-o criança
Afago-lhe os cabelos
Sussurro estórias nunca ditas
E ele ri
Seus dentes,
Ah, seus dentes iluminam galáxias
brotam árvores deles
escorrem rios
explodem cachoeiras
O menino estrela
guia meu olhar pra longe
bem longe: o improvável distante
e lá, nas curvas do além-corpo,
encontro paz
e, por fim.
adormeço.

segunda-feira, dezembro 11, 2017

a palavra surda

De que me servem estas cordas
que enovelam a garganta?
Sangram!
Mais de dentro pra fora
Enforcam sim
e desaforam!
Repugnam os ais
as tais vocais
cordas
dos estrangulamentos diários.

Mais rápida que a luz,
o pus
da sociedade.

Numa reunião de surdos (e mudos) fui
Tudo quieto, menos confuso
Pediam a palavra em ordem:
A palavra!
Sutil delicada palavra
Ela, central, os olhares em sua volta
Ali, ela tinha voz
ainda que muda!
Ah, a palavra bailava no ar.
Dedilhada com denodo e delicadeza,
que belas vogais e consoantes!
Tão caladas
Tão potentes
Ninguém as perdia
Ninguém as largava.
No silêncio de nossa miséria humana,
a palavra pesava
quieta e clara
como o dia.

segunda-feira, outubro 23, 2017

Assombros em tempos odientos

É tempo de espanto
Olhem!
Nasceu tímido naquela boca
Anêmica e flácida
Vive
É morno
Pulsa lentamente e arrítmico
Escorre pelos cantos, ganha o mundo
Não virem seus rostos, não
ousem fitá-lo!
Ali! Todo enrugado, ensebado e quase fedorento
Nauseabundo
Ingênuo
No esmalte amarelo reflete-se o assombro
das dilatadas pupilas:
os vi(v/d)entes!
É tempo de espanto
Insinua-se, ainda,
um poema.

segunda-feira, setembro 04, 2017

a poesia suando ao meio dia na esquina do Largo do Amores com a Rua Rio Branco

poesia
poeira
pois era
será?

as buzinas ao meio dia
no sol quente da praça que desce a rua
até a esquina dos infortúnios
os ônibus em fila indiana, inquietos,
balançam o bumba-meu-boi dos buracos da ilha
a cidade ao meio dia ferve
tremula o horizonte fumegante do asfalto
as vidas se arrastam
sentado, assisto
tanta vida perdida na pressa dos dias
o suor marca a corpulenta velha
imagino seus odores
nesta hora, nesta rua, nesta cidade ao meio dia
lembra uma tia gorda
de cujos abraços fugia
as pessoas e suas gorduras suam fedidas
igual cão
ou animal domesticado qualquer
e nem almocei ainda
aqui nesta janela
descortinando a agonia de tudo
o desespero do tempo
a inquietude do segundos que são  passado
nem penso e já se foram
(que tempo cruel!)
as pedras ali do casarão insistem em desmentir
mas até elas o relógio intimou
pedra mole?  tempo duro?
picha moleque, marca com teu nome o muro
amanhã Fátima limpa
me acorda para ver
mas agora esse dia que não finda
esses ponteiros em riste
a praça descendo a rua
encontra outra praça, triste
de amores, só passado
de presente, daquele menino, o piche.

domingo, agosto 13, 2017

menu

O cardápio das palavras
A refeição do verbo
Delícia dos signos
Desafeto dos versos
Aventura dos símbolos
Hipérbole dos objetos
                       diretos.
Os intransigentes intrasitivos
                        cessam o desejo
                        do eterno.

No cardápio das sílabas
Os hiatos do universo
Pingo de luz no reverso
Nudez de cores
Improvável manifesto
De palavra exata
Inexato sentido
Concreto precipício
O cardápio das palavras
Os desencontros do verbo
O delírio do poeta
perdido no verso.

domingo, maio 21, 2017

dandara morta

o corpo não está inteiro
nem este poeta
os livros de anatomia não nos nasceram
ali separam
os paus e as bocetas
e este caminho do meio?
indivisível e invisível, permeio

o corpo é a sede
e a sede
cede!
sua geni

te esconde no desejo
tua curva, uma vírgula no meio
os peitos ou os seios?
maldita!
que feio!

este corpo que fede
uma fraude
a desgraça do mundo
um bofete no moribundo
só mais uma que cede
à sede de sangue
apanha forte, merece
tá escrito no versículo
dos infortúnios.

felação

na vertigem dos poetas
bocetas de ninfetas
no paraíso dos ascetas
o desejo das punhetas

na vertigem das palavras
os cantos sujos das páginas
marcadas com suas orelhas infectas
em otorragia de ideias

na vertigem deste poeta
a imundície da palavra
a embriaguez do mundo
teu cu em pelo, mudo

na vertigem do universo
em transe, a humanidade
transa humana idade
o gozo coletivo do verso

ah, por que me tomas?
insurjo, pois, nesta noite infame
profana a madona, anda!
esta vertigem de herege

o cheiro nascido dos poros
escorrem pela virilha
esta vertigem, líquidos, suores
saciam tua sede, tua língua.

segunda-feira, maio 08, 2017

sexo, suor, H2O

o grito que sufoco
explode dentro, calado
extravasa noutros poros
em cristais liquefeitos
de hidrogênios e o ar
num menàge a trois
perfeito
vem da face, do peito
de toda a pele em extensão
do que os pulmões restringem
se dilata o coração
em ritmo de galope
à singeleza dum delicado toque
da tua à minha mão.

sexta-feira, maio 05, 2017

trans(a)gressão

sou sim
inteiro, completo
esculpido
o repertório humano
imundo! insano!
gritam
nem inteiro
nem meio, nem fim
homem ou mulher
alfa, ômega, uma drágea de malmequer
repousa tudo aqui
o sexo, o orifício, o suicídio
nem homem, nem mulher
sou enfim

         tatuado o corpo, liberta a alma
         o primeiro, só um meio
         o outro, sem fim
         partida imagem
         dum jesus transfigurado
         não em lenços abençoados
         não!
         em porretes, chutes dos soldados
         da fé
         o céu é o mal do mundo
         cruel, lote comprado: quem quer?

sou meio de mim
a outra metade me arrancam
violentam, estupram, sangram
tapas, cuspes, desaforos
nem homem, nem mulher!
a dualidade chata, humano burro
sou sim
imenso, sou tudo
da estupidez, corro
do binário, surto.

domingo, março 12, 2017

Negra Martinha

À minha trisavó, cujos pais eram(são) anônimos.

Estrangeiro de mim
vou tropeçando nas dobras
das minhas reentrâncias.
O outro na sua completude
me estranha
e dá ânimo às penas que, entre as frestas daqui,
silenciadas em mim
(sou agora o silêncio alheio),
teimam em ingurgitar
e sucumbem na úvula.
O véu do palato coroa
a língua trêmula.

O grito então parido,
nascido de baixo peso,
segue na UTI decerto,
mas é grito!
Inda que intubado,
é grito!
Inda que franzino, mofino,
é grito!
Inda que quase surdo, quase mudo,
é grito!
Assistido por outros, 
meu grito vai vingando sob cuidadosas mãos
que moldam gritos tão mais antigos.
Resiste grito!

Sou os quadris daquelas meninas
os paus dos sacanas
o devaneio do artista
sou a trança da negra
sou joyces, os orixás e mães d'águas, as marianas!
O tambor do quilombo ritma os músculos
estriados de movimentos involuntários
presos, iguais àquelas penas, 
entr'as frestas ósseas da caixa torácica
que porto.

E eis que me surge ela nesta tarde.
Dos confins do esquecimento,
Nêga Martinha - a imbatível mulher!
Cabelos crespos
boca grossa
pelos pubianos à mostra
estuprada aos 14 anos
pelo pai de seus muitos filhos
branco, viúvo, e rico,
era da fábrica seu patrão.
Axé, Saravá, Eparrêi, minha mãe!
Aquela preta sou eu.
- É puta!
A puta gerou meu bisavô - católico fervoroso
A puta que pariu respeitáveis
(um inclusive monsenhor)
quis morrer como fora: puta
negou-se ao sobrenome
do homem
que lhe propôs casamento já moribundo
a puta mais "foda"
feminista sem título
sou ela
nesta casa cuja negritude teima e clareia na cor de minha pele
segue retinta
bem tinta
tintura negra
no meu sangue
na minha vida.