Tenho tanta saudade de mim...

quinta-feira, abril 28, 2011

a infância do meu pai

Ao meu amado pai que outro dia, visitando a casa de seu padrinho, disse-me que procurava sua tia e sua infância por detrás daquelas portas antigas.


Atrás daquela porta velha sem trinco
jazia a infância do meu pai.
Esquecida estava nas suas memórias de menino
sua vó Amélia ali, sentada, quieta, sorrindo.
Estava também o seu pião de madeira,
talhado a mão pelo Zeca Texeira,
e no mesmo canto da mente,
numa caixa bem juntinhos,
dormiam uma pipa, um balanço
e, feito de lata de óleo de cozinha
com rodas de chinela havaiana
puxado por um cordel, o seu carrinho.

E só agora naquele vão sujo com poeira
da porta velha sem trinco
carcomida nas beiras
que levava a um quarto
cuja luz se acanha
da casa de portão largo
quase de esquina
com a rua que o nome esqueço
e outra, a Zoé Cerveira,
no bairro decadente da Alemanha
meu pai se achou de novo criança.

Aquela porta era suja mesmo de tempo:
escondia não somente o pó e coisas velhas
dos tempos de sua vó,
mas das disputas de peteca, de bola e outras parelhas
que fizeram brotar naquela tarde a meninice largada no esquecimento;
e que agora adulto, vago e sozinho
caminhando entre paredes e assombros que desde pequeno
guardando no peito seco e mofino
o que de idos tempos persiste voraz, canino,
que é o medo de perder a voz, o raciocínio
ou de ti, passado, seu encantamento.

sexta-feira, abril 15, 2011

poesia imunda

            A velha não cabia num poema.
            Tão suja, cheia de mazela,
com seus resmungos, gritos de dor
                                          e mais velha.
Sua mama em carne viva, ulcerada
                                          e amarela
consumida pelo tumor - doença imunda
                                          e que nem sabe ela
deixou aquilo crescer em seu corpo como bicho,
                                          sem noção,
                                          quase cadela
explodindo em podridão,asco, horror
                                          necrose fétida;
que perturba minha paciência, meu sono,
                                        sua néscia!

         Agora, sem paz
         escrevo rude, depressa
         e perplexo questiono:
         se o poema que componho
        cabe tamanho assombro
        desta tua doença maléfica?

Ora pois, se é fato e verdade
que a poesia é livre
transita mundos e épocas sempre vívida, sem idade,
revolve as imundícies humanas, suas vísceras e entranhas,
que por razão não absurda, nada mais me estranha.
Já que se poesia não discrimina, nem é ortodoxa, tampouco contida,
por que haveria de ser
que esta pobre velha a sofrer
não tivesse no poema sua ferida?

domingo, abril 10, 2011

amor terminal

Não chores, meu amor,
não chores mais
pela saudade triste
pelo nefasto vão
que nos separa
por mais de 1000km
que a distância insiste
desta cidade vil até o Maranhão.


Não és tu quem é doente, não
nem quem sofre de maus humores
que corroem a alma,
definham o corpo,
matam a ilusão.
Sou eu o câncer enraizado,
sou eu a peste em ressurreição
que das mortes épicas da Europa,
ao castigo diuturno do Sertão,
apunhalam minha medula,
                           infectam minha carne,
                           destroem meu pulmão.

Não chores viu, não chores não:
eu cá que sou terminal
e tu és o redentor.
Em mim habita este mal que
de minha existência é feitor:
                               das suas mãos brotam a agonia
                               dos seu olhos, meu furor
                               da sua ira, minha febre,
                               da minha doença, por ti,
                               o meu amor.

Não chores, meu bem, não mais
eu já suplico pelo ópio, pela morfina, pela paz
não sossego, nem durmo,
nem sinto pena do meu fim.
Sei que em breve minha dor,
minha dispneia, meu palor,
meus fluidos hemáticos
serão findados num exato prazo
que esta distância se extinguir.
Eis portanto a minha cura,
pois no longe sou loucura,
já que te ti sou metastático.

explode a poesia

Ao poeta Ferreira Gullar que certo dia me emudeceu.

Ele me deixou sem voz
             sem rumo.
             Sempre esteve ali,
             poesia latente, insone.
Eu que na correria
nunca vira.
Eu que na correria que me consome
Nunca deixei gritar sua voz
                                   sem pudor
                                   dilatada e infame
                                   Soar o desejo do mundo,
                                   desejo do abismo,
                                   do caos e da fome.
Romper ligeiro o que me espanta
                                   e afronta.
Extraindo o fel
               o cerne
               o sangue
               o gozo
               o sumo.
Mas agora
   mudo
     sozinho
       sem rumo,
           sumo.


Eu que na correria que me consome,
Correria do trabalho
mal pago
insalubre
pobre
precoce
Dos dias que findam sem lógica sem ação ou propósito
Ou dos casos mal amados
dos corpos nus ali debruçados
que com álcool embriagam
depois fogem
malditos, torpes
nunca percebi
sua existência atroz, louca e viciada.

Foi preciso um bofete,
o acaso pra emudecer meu mundo
e ouvir com calma aquele velho que veio do norte
enrugado
feio
sem sorte
        Falando duma poesia impura
        suja
        sem dono.
Poesia atemporal
que nasce agora
ou há 30 anos
numa fotografia qualquer
empoeirada.


É que nunca percebi
                         (com a correria que me consome e que só agora para)
que o velho de história triste
                         olhar medonho
que tirou minhas pernas, meu ar
                         seu velho enfadonho!
é aquele infeliz
de crina gris
de dentes amarelos
igual laranja podre
que tem sua poesia úmida
cheia de ruídos
de secreções
e odores
e quando criança
               filho de dona Alzira
da denúncia
do desassossego
dos desamores
corria seminu
naquela ilha de pretos velhos
serpentes
mitos
minas
tambores.


Seu nome
pobre insano
sequer me atrevo.
É que ainda reluto
asfíxico
mudo
díssono
sôfrego
com uma dor tremenda
                          parida
                         doente
         cheia de covardia.

Mas como não posso
deixar que esta agonia
minha vista embace
saio correndo pela rua
bambo
sem juízo
cego
sem disfarce,
e,
temendo gritar
e como tu, infeliz,
ganhar o choro
a esquizofrenia,
beijo o asfalto e uno minha saliva ao teu cuspe
                                           repugnante enlace,
                                           desespero faminto
                                      meu corpo em êxtase
                                             quase um enfarte.
                   Ira corroendo terra
                   noite estuprando dia:
                   Eu puro!
                   É que explode
                   em mim
                   poesia.