Todos os dias seguia o mesmo ritual. Acordava com humor trágico e o corpo quente com aquele cheiro bem peculiar de quem havia dormido por um bom tempo. Ainda permanecia ali com os olhos meio abertos, meio fechados, tomando fôlego para voltar novamente à vida. Sempre cochilava mais que podia, mas se não fizesse aquilo, parecia que não dormira a noite inteira. Mesmo com o andar das horas, nunca punha a pressa adiante de seus passos e tão logo se entregava ao seu diário processo de transfiguração. A água escorria-lhe as coxas correndo um rio pelas pernas e carreando todas as impurezas de sonhos maus que por certo haveria de ter tido. Sempre sonhava coisas ruins. Dizem que os sonhos são necessidades mal expressadas. Devia ser uma pessoa recalcada ou no mínimo tola. Sentava-se a frente de sua penteadeira e com cuidado arrumava as madeixas numa composição ortodoxa, comportada. Logo o pó viria cobrir seu rosto, moldando a máscara que diariamente compunha o semblante estático. O vermelho do seu batom era sangue puro. Matava os seus amores todos os dias, retirava-lhes o sangue e o guardava. Suas pernas delicadamente acariciadas por meias finas de seda logo ficavam tesas quando os pés se acomodavam no scarpin de salto bem longo e fino, sua arma predileta. Adorava matar e pisar suas vítimas com o salto agulha, cravejando sua ira na carne morta, espasmódica, de seus defuntos. Mas ela era recalcada. Então apenas sonhava.
Na doçura de seus gestos e na mansidão de seu olhar, trazia a ira de toda uma existência. Sua boca sedenta de almas exalava o perfume lúgubre das flores dos cemitérios. Seu corpo jazia a perdição. Apenas sonhava. Toda vestida de dama em seu tailler, saía de seus aposentos toda majestade. Descia as escadas da pensão, seu palácio, e logo a porta se abria para então a rua lhe absorver. Sumia.
Os fins de tarde daquela ilha eram extraordinariamente policromáticos. Nuanças de vermelho e azul fundiam no horizonte e cortavam a paisagem numa pintura fouvista. Logo ressurgia. O ranger da escadaria anunciava o seu regresso. Intacta. Nem parecia que um dia inteiro havia passado. Permanecia a mesma. Então retirava toda a sua fantasia, sua máscara e suas armas. Vomitava as vísceras de suas vítimas que nunca morriam. O corpo voltava a ser velho e cansado. E se entregava aos sonhos reais de morte que lhe traziam vida toda manhã.
Na doçura de seus gestos e na mansidão de seu olhar, trazia a ira de toda uma existência. Sua boca sedenta de almas exalava o perfume lúgubre das flores dos cemitérios. Seu corpo jazia a perdição. Apenas sonhava. Toda vestida de dama em seu tailler, saía de seus aposentos toda majestade. Descia as escadas da pensão, seu palácio, e logo a porta se abria para então a rua lhe absorver. Sumia.
Os fins de tarde daquela ilha eram extraordinariamente policromáticos. Nuanças de vermelho e azul fundiam no horizonte e cortavam a paisagem numa pintura fouvista. Logo ressurgia. O ranger da escadaria anunciava o seu regresso. Intacta. Nem parecia que um dia inteiro havia passado. Permanecia a mesma. Então retirava toda a sua fantasia, sua máscara e suas armas. Vomitava as vísceras de suas vítimas que nunca morriam. O corpo voltava a ser velho e cansado. E se entregava aos sonhos reais de morte que lhe traziam vida toda manhã.